Em “A Substância”, Coralie Fargeat nos mergulha num labirinto de identidade, corpo e envelhecimento, onde os limites entre o real e o artifício se dissolvem. Ao contrário dos contos de juventude que povoam o cinema, esta obra audaciosa foca-se em uma personagem que já ultrapassou seu auge. A protagonista, Elisabeth, já viveu seu momento de glória e, agora, enfrenta uma cruel realidade: a sociedade que a glorificou por sua beleza e juventude quer substituí-la por uma versão mais nova e ‘superior’.
O filme começa com Elisabeth, uma atriz que acaba de completar 50 anos, assistindo sua vida desmoronar enquanto almoça com seu produtor, Harvey. Durante esse encontro, a conversa é gélida e cruel, repleta de desprezo e insinuando que sua validade, tanto na indústria quanto como mulher, está acabando. Enquanto Elisabeth tenta manter uma compostura já desgastada, lembretes constantes de sua idade a assombram: é seu aniversário, e cada gesto que faz a traz de volta à realidade que não pode mais negar.
Uma das cenas mais impactantes surge logo no início: Elisabeth, após sofrer um acidente de carro, fixa seu olhar na água escorrendo pelo ralo, uma metáfora pungente da juventude e vitalidade que escapa de suas mãos. Ao mesmo tempo, uma mosca em seu copo de água simboliza a morte lenta, uma constante sensação de deterioração que se tornará o núcleo de sua jornada. Mais tarde, o rosto de Elisabeth é arrancado de um outdoor, um prenúncio de que sua imagem, cuidadosamente cultivada e protegida por décadas, não tem mais lugar no mundo que ela conhecia. Ela não está apenas perdendo espaço na indústria, ela está perdendo o direito de existir na narrativa de sua própria vida.
A partir desse ponto, o filme entra numa espiral de angústia psicológica e transformação física. O globo de neve, que se torna um símbolo recorrente, representa a memória cristalizada de um tempo melhor. Assim como em “Cidadão Kane”, onde o protagonista segura um globo refletindo sua infância perdida, Elisabeth vê nesse objeto uma prisão de suas próprias lembranças, um tempo congelado, intocado pelo envelhecimento. Esse globo contrasta ferozmente com o retrato moderno de uma Elisabeth envelhecida , um conflito visual entre a juventude e a realidade de quem ela se tornou. Não é à toa que, em um acesso de fúria, Elisabeth arremessa o globo contra esse retrato, um gesto simbólico onde juventude e velhice colidem com consequências desastrosas.
A trama toma um rumo dramático quando Elisabeth decide experimentar “A Substância”, uma fórmula misteriosa que promete rejuvenescer sua imagem e trazer de volta o controle sobre sua vida e carreira. O processo de transformação que se segue é incompleto e distorcido, dividindo-a como um ovo, de onde nasce Sue, uma versão mais jovem e supostamente perfeita de Elisabeth. Nesse ponto, a estética visual do filme muda radicalmente. Onde antes a cinematografia tratava o corpo de Elisabeth com uma fria e clínica distância, o corpo de Sue é apresentado em uma glorificação quase comercial, remetendo à objetificação desenfreada da juventude: cada curva, cada detalhe de sua pele é exposto como uma mercadoria a ser desejada.
Sue rapidamente assume o lugar de Elisabeth, não apenas em sua vida, mas também em sua própria psique. A antiga Elisabeth, agora observando de fora, começa a se despedaçar. Fred, seu amor de juventude, surge brevemente como um refúgio, mas até esse momento de nostalgia é manchado pela incapacidade de Elisabeth de se reconectar com quem ela era. Fred ainda a vê como bela, mas ela não pode mais acreditar nisso, pois está presa numa comparação incessante com Sue. Sue, por sua vez, vai se revelando como um parasita, física e emocionalmente corroendo Elisabeth, simbolizando o efeito corrosivo que a busca pela perfeição impõe sobre a identidade feminina.
À medida que Sue continua a roubar a vida de Elisabeth, a linha entre as duas se desfaz. O ponto culminante acontece durante um show de Ano Novo, onde Sue tenta se apresentar em um espetáculo de beleza e vitalidade. No entanto, seu corpo começa a falhar. Seus dentes caem, e a fachada perfeita que ela construíra desmorona diante dos olhos do público. O que se segue é uma explosão grotesca de expectativas destruídas, onde Sue, incapaz de manter sua juventude artificial, se transforma numa figura monstruosa, uma fusão bizarra e violenta entre a velha Elisabeth e sua versão mais jovem. Essa criatura, apelidada de “Monstro Elisasue”, personifica o desastre que é tentar viver fora dos limites da natureza humana. Quando Monstro Elisasue sobe ao palco, o espetáculo se transforma em um massacre simbólico, uma vingança contra os padrões impossíveis de beleza que esmagam as mulheres sob o peso da objetificação.
Neste ponto, Fargeat faz uma crítica feroz à indústria do entretenimento. Os homens no controle pedem que Sue “sempre sorria”, um eco nauseante das expectativas tóxicas impostas às mulheres para serem sempre agradáveis e atraentes, mesmo quando estão no auge de sua dor e decadência. Harvey, o produtor, não consegue ver a monstruosidade que ele ajudou a criar, afirmando que ela é sua “criação mais linda” — uma ironia devastadora que encapsula a cegueira masculina diante dos estragos que sua busca por beleza perfeita causou.
O final do filme é uma tragédia de destruição e vazio. Monstro Elisasue literalmente explode em uma enxurrada de sangue, mas o rosto de Elisabeth sobrevive e rasteja para longe, voltando para a estrela que uma vez imortalizara sua glória. As estrelas caem sobre ela como brilhos de um globo de neve quebrado, e no final, só seu nome permanece. O último vestígio de uma existência esmagada pelo desejo de eternidade que a juventude promete, mas que nunca pode realmente cumprir.
“A Substância” é uma reflexão poderosa sobre os horrores do envelhecimento e o culto à juventude que assola tanto a indústria do entretenimento quanto a sociedade em geral. Se em obras como “Perfect Blue” e “Cisne Negro” assistimos à destruição de mulheres jovens e promissoras, aqui, o foco está no colapso após o auge. Elisabeth está tentando desesperadamente recuperar uma vida que sente ter perdido, uma batalha contra o tempo que nenhum de nós pode vencer. É uma narrativa universal, uma meditação amarga sobre o que significa envelhecer em um mundo que idolatra a juventude e despreza a sabedoria que vem com a idade.
Coralie Fargeat cria, em “A Substância”, uma parábola sombria sobre a autoimagem e o peso esmagador de padrões inatingíveis. Ao fim, o filme deixa uma mensagem profunda: o verdadeiro horror não está na perda da juventude, mas na incapacidade de aceitar quem realmente somos ao longo do tempo.
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