“A Mulher Que Nunca Existiu” é um drama tunisiano que escapa do lugar-comum ao tratar identidade, trauma e opressão feminina com tensão e lirismo. Dirigido por Hinde Boujemaa e inspirado em fatos reais, o filme acompanha Aya, uma jovem que simula a própria morte após sobreviver a um acidente. O gesto radical, longe de soar como escapismo, serve como ponto de partida para uma crítica social intensa. Ao reinventar-se como Amira, Aya acredita ter encontrado liberdade, mas descobre que as estruturas que a limitam permanecem inalteradas, mesmo sob um novo nome.
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O filme usa essa premissa para retratar com clareza o ciclo opressor que molda a experiência de muitas mulheres em sociedades patriarcais. Aya só consegue viver ao desaparecer, mas o que surge como libertação rapidamente se converte em nova prisão, agora revestida por uma falsa sensação de anonimato. Sua jornada entre Tozeur e Túnis espelha não apenas um deslocamento geográfico, mas um contraste brutal entre tradição e modernidade, entre visibilidade e apagamento. Ainda assim, ambos os ambientes carregam a mesma violência estrutural que sabota seu desejo de autonomia.
Fatma Sfar entrega uma atuação central potente, sustentando a dualidade da personagem com naturalidade. Sua presença em cena alterna vulnerabilidade e resistência, o que é essencial para manter o espectador investido mesmo quando o roteiro se dispersa. O primeiro ato funciona bem: é ágil, tenso e emocionalmente carregado. O segundo, porém, tropeça em subtramas excessivas que diluem o foco narrativo. O erro policial que a coloca no centro de uma trama mais ampla poderia ser mais contido, permitindo que a transformação interna da protagonista ganhasse ainda mais espaço.
Tecnicamente, o filme tem acertos marcantes. A fotografia destaca o contraste entre o deserto árido do sul e o caos pulsante de Túnis, reforçando visualmente a travessia emocional da personagem. A paleta de cores acompanha o estado psicológico de Aya, passando de tons quentes e secos para cinzas frios e urbanos. A edição, por outro lado, falha em alguns momentos: o ritmo perde força após a metade, e certas sequências poderiam ser mais enxutas. Há uma sensação de que o filme se estende além do necessário, prejudicando o impacto final.
Ainda assim, “A Mulher Que Nunca Existiu” é um filme relevante, especialmente pela forma como traduz politicamente a experiência íntima de uma mulher marcada pela violência e pela urgência de desaparecer para sobreviver. A narrativa funciona como um espelho da Tunísia pós-revolução, em que promessas de liberdade e renovação ainda esbarram em estruturas de poder arraigadas. Aya/Amira não é apenas uma personagem em fuga, mas um símbolo do país tentando se reconfigurar, sem ter certeza de que o futuro trará, de fato, algo novo.
O longa acerta ao evitar qualquer glamourização do recomeço. Ser outra, para Aya, é um risco constante, e o peso da reinvenção recai não como libertação plena, mas como último recurso de uma existência sem escolhas reais. Mesmo com falhas pontuais de foco e ritmo, o filme é uma estreia sólida no cinema tunisiano contemporâneo, sustentado por um desempenho principal afiado e uma sensibilidade visual que amarra bem suas camadas simbólicas.
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