O filme “Ainda Estou Aqui” é um marco no cinema brasileiro, trazendo à tona uma profundidade emocional que se espalha em cada cena. Sob a direção de Walter Salles, a narrativa biográfica de Eunice Paiva, interpretada com maestria por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, expõe a transformação de uma mulher que teve sua vida devastada pela ditadura militar. Baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, o longa vai além de contar a história de uma família. Ele se transforma em um grito de memória coletiva, um retrato da resistência e da coragem diante da brutalidade do regime.
O filme faz parte da programação da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Para mais informações, basta clicar aqui.
Em sua estreia no Festival de Veneza, em 2024, “Ainda Estou Aqui” foi recebido com uma ovação de dez minutos. As atuações de um elenco que parece viver cada emoção que retrata contribuíram para esse impacto imediato. A trajetória de Eunice, uma mãe e advogada que vê seu mundo ruir com o desaparecimento do marido Rubens, é dolorosamente humana. O filme foi aclamado, conquistando a Osella de Ouro de Melhor Roteiro e sendo escolhido para representar o Brasil no Oscar de 2025.
A história de Eunice é um símbolo da luta por justiça. Casada com Rubens Paiva, político sequestrado pela ditadura em 1971, ela viu sua vida ser tragicamente alterada. Rubens foi levado pelos militares, brutalmente torturado e desapareceu. Durante décadas, a família buscou respostas, enquanto Eunice se tornava uma figura central no ativismo político. A dor pessoal se misturava à luta pelos direitos humanos, em um Brasil que ainda não cicatrizou suas feridas.
Na coletiva de imprensa, o elenco compartilhou suas experiências. “Estamos na shortlist para o Oscar. Parece que é a fronteira final que temos que atingir, mas esse filme já é um acontecimento para a gente”, disse Fernanda Torres. Ela completou: “Quando um ator brasileiro é nomeado, ele já ganhou. O filme já está no mundo”. Selton Mello, que deu vida a Rubens, também falou sobre sua transformação para o papel: “Foram 20 quilos, foi uma transformação física grande, aos 51 anos não é fácil. Mas o personagem precisava disso, ele era maior que a luta em si, ele era um pai”. Mello também mencionou como se conectou ao personagem: “Eu tinha fotografias do Rubens para me guiar, mas não vídeos. Ouvi histórias da família, queria capturar o espírito dele”.
Walter Salles explicou o que o atraiu no projeto: “Não surge todo ano um livro como o do Marcelo. Ele retrata a memória da família Paiva e a história do Brasil ao longo de décadas. Isso sempre me fascinou”. O processo de adaptação foi longo e colaborativo. “Foram mais de 20 versões do roteiro. O Marcelo foi fundamental, sempre trazendo novas informações e sugerindo ajustes. O desafio era encontrar a forma mais justa de retratar aquela família”.
Selton Mello compartilhou um aspecto pessoal de sua experiência no filme: “O que mais me tocou foi a conexão com a memória. Minha mãe partiu recentemente, por Alzheimer, assim como a personagem da Fernanda Montenegro. Foi uma viagem interna para todos nós”.
A obra é devastadora. Desde o momento em que Rubens é levado pela ditadura, o filme constrói uma tensão crescente que atravessa a narrativa. Walter Salles captura essa dor íntima e transforma em um retrato do peso histórico de um Brasil marcado pela repressão.
Fernanda Torres é o coração do filme. Sua atuação não se limita a interpretar o luto de Eunice, ela habita esse luto. A força de sua presença na tela faz com que cada gesto, cada olhar carregue o peso da perda e da esperança. Sua Eunice luta para proteger seus filhos, enquanto se apega à esperança de que Rubens possa voltar.
A fotografia de Salles acentua essa narrativa com uma beleza melancólica. As cenas na praia carioca, banhadas por uma luz nostálgica, são um contraste visual ao peso sombrio da repressão. O Rio de Janeiro brilha com uma dualidade, refletindo a própria vida da família antes da tragédia.
Uma cena especialmente forte mostra Eunice no mar, enquanto um helicóptero militar sobrevoa. Esse momento encapsula a tensão do filme. A paz aparente é interrompida pela ameaça invisível, assim como os momentos de amor e riso da família, sempre à beira do colapso. O filme usa esses contrastes para intensificar a narrativa de uma forma visceral.
Memória é o fio condutor da trama. Álbuns de fotos, cartas antigas, rituais familiares, tudo carrega o peso da ausência de Rubens. A família reorganiza sua existência em torno dessa falta. “A questão não é superar a dor, mas aprender a viver com ela”, disse Walter Salles. O roteiro é honesto e não busca soluções fáceis para o sofrimento.
Na reta final, a sutileza domina. Eunice, envelhecida, olha para trás com uma aceitação silenciosa. O filme evita grandes explosões emocionais, preferindo os detalhes do cotidiano e as performances contidas. A doença de Alzheimer, enfrentada por Eunice no fim da vida, traz um medo profundo: o que acontece quando as memórias começam a se apagar?
“Ainda Estou Aqui” é uma celebração do poder da lembrança. Ele nos lembra que enquanto houver memória, haverá vida. A presença de Rubens é constante, mesmo que invisível. O filme o eterniza nas pequenas coisas, nas histórias contadas, no amor que nunca morre. Rubens, de certa forma, ainda está ali, e é isso que torna o filme tão poderoso.
No fim, sem muitas delongas, é o melhor filme de 2024.