“Alpha“, novo longa de Julia Ducournau, caminha pelas bordas instáveis do medo contemporâneo com a mesma precisão orgânica e intuitiva com que seus filmes anteriores costuravam carne e metáfora. No entanto, aqui, a cineasta francesa parece recusar a brutalidade explícita para alcançar algo ainda mais corrosivo. O resultado é um estudo dolorosamente sensível sobre contágio, rejeição, identidade e pertencimento. Um filme que pulsa entre a paranoia coletiva e a delicadeza individual com uma fluidez que só o cinema de Ducournau seria capaz de sustentar.
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A história, ambientada em algum ponto dos anos 1980, gira em torno de uma adolescente que se torna pária em sua escola após rumores de que estaria infectada por uma nova doença. O cenário é, à primeira vista, reconhecível. A menina isolada. A histeria da juventude. A ignorância da autoridade adulta. Mas Ducournau não filma a adolescência como trauma universal. Em vez disso, ela escava o biológico, o neurológico, o social e o emocional até que tudo isso se misture em um novo tipo de horror: o do corpo rejeitado por um mundo que não sabe mais distinguir doença de desvio.
Tahar Rahim, em um papel secundário, emerge como figura silenciosa e intensa, incorporando um tipo de presença que desloca a leitura da história. Sua atuação parece orbitada por dor não dita, ampliando o alcance emocional do filme com economia e precisão. Cada gesto contém algo não resolvido. Cada silêncio, uma história que ficou para trás.
Visualmente, “Alpha” é talvez o trabalho mais sutil de Ducournau. A câmera raramente se torna intrusiva, mas observa com atenção clínica e uma compaixão latente. A fotografia revela corpos como mapas vulneráveis. Músculos, ossos, contornos se tornam elementos dramáticos. Há algo quase escultórico no modo como a luz modela os personagens, como se seus corpos carregassem a verdade de algo que suas palavras ainda não conseguem processar. A trilha sonora, por sua vez, funciona como uma membrana emocional, aderindo ao que está por vir antes mesmo de acontecer. E a edição, com seu ritmo inquieto, nunca permite conforto.
O horror corporal que consagrou a diretora em “Raw” e “Titane” ainda está presente, mas é transmutado. Em “Alpha”, ele se manifesta como hipocondria coletiva, como medo do toque, como terror difuso que não encontra um agente claro, mas que ainda assim destrói relações, esfacela identidades e isola os vulneráveis. O pavor aqui é psicológico, epidérmico e silencioso.
É um filme que exige entrega. Ele não oferece respostas fáceis nem um arco fechado. Não há aqui um terceiro ato tradicional, tampouco um desfecho que reconcilia o espectador com a narrativa. “Alpha” prefere deixar lacunas. Silêncios. Pontes incompletas. Porque essa é, justamente, a experiência que busca provocar: a da incompreensão sensorial e emocional diante de um mundo que enlouquece em reação ao que não consegue nomear.
O subtexto é vasto e multiforme. Há um comentário feroz sobre a medicalização da diferença, sobre os mecanismos de exclusão institucionalizados em escolas, lares e comunidades. Há uma leitura possível sobre crises sanitárias, pandemias recentes, desinformação, medo irracional. Mas o mais potente talvez seja sua abordagem sobre como a doença imaginada pode se tornar real quando o corpo é repetidamente dito como contaminado, como errado, como estranho. A hipocondria aqui não é apenas o medo de adoecer, mas o medo de ser identificado como alguém que carrega o mal invisível.
Por trás da névoa de metáforas, no entanto, “Alpha” é, acima de tudo, um filme sobre o cuidado. Sobre a fragilidade das relações quando submetidas ao terror institucional. Sobre o preço da empatia em tempos de pânico moral. E sobre a dificuldade de cuidar do outro quando a própria percepção foi distorcida por filtros paranoicos.
É um trabalho menos chocante que os anteriores de Ducournau, mas talvez mais devastador. Sua força está na persistência com que permanece sob a pele, dias após a exibição. Não pela violência explícita, mas pela vulnerabilidade irreversível que instila. É possível sair do cinema sem entender tudo, mas dificilmente sem sentir tudo.
“Alpha” talvez seja o primeiro grande filme sobre o trauma coletivo reprocessado como lenda urbana. Uma história de adolescentes assolados por medos que o mundo adulto projeta sobre seus corpos. Um retrato de uma geração treinada para temer o contato, a intimidade, a possibilidade de contágio afetivo.
Julia Ducournau criou uma obra que se recusa a oferecer consolo. Em vez disso, entrega uma espiral. Uma experiência que exige ser revisitada, interpretada, digerida com o tempo. Seu cinema já não busca mais o choque. Busca a rachadura. E por essa rachadura, ela nos mostra um mundo que sangra em silêncio.
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