Existe uma linha muito tênue entre denúncia social e exploração emocional. “Até a Última Gota” acredita estar caminhando pela primeira, mas passa a maior parte do tempo tropeçando na segunda. O novo filme de Tyler Perry para a Netflix se vende como um drama intenso sobre desigualdade, abandono institucional e o desespero materno frente a um sistema falido. No entanto, o que entrega é um amontoado de situações extremas, personagens unidimensionais e reviravoltas absurdas que minam qualquer possibilidade de impacto genuíno.
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Há, de fato, um impulso dramático interessante na proposta: o colapso psicológico diante da violência cotidiana. Mas o filme parece mais interessado em amplificar a tragédia do que em entendê-la. Cada cena parece existir para acumular sofrimento, como se a única maneira de se construir empatia fosse esticar a dor até o ponto do irreal. Não há pausa. Não há contraste. O que poderia ser um estudo sobre uma mulher empurrada ao limite pelo descaso institucional se transforma rapidamente em uma sucessão de abusos narrativos.
A câmera registra os eventos com funcionalidade burocrática. Há um sentimento constante de que a direção não sabe exatamente como lidar com o próprio material. Falta finesse no manejo do ritmo, nas decisões estéticas e na costura emocional entre os eventos. O design de produção e a fotografia fazem o básico para sugerir veracidade, mas o filme nunca alcança a densidade visual necessária para sustentar o peso da história que quer contar.
A protagonista é a única âncora de humanidade. Existe um esforço visível para dar vida a uma personagem que, no papel, foi reduzida a um arquétipo de sofrimento. A atuação tenta preencher as lacunas emocionais que o roteiro se recusa a desenvolver. Mas nenhuma atuação, por mais honesta que seja, consegue compensar a superficialidade estrutural de um filme que acredita que personagens complexos são aqueles que apenas choram, gritam e sofrem o tempo inteiro.
A montagem, pouco inspirada, acelera decisões importantes e se demora em cenas que pouco acrescentam. As transições são secas, abruptas, e deixam a narrativa com um ar fragmentado. Há pouca fluidez entre as partes e quase nenhum senso de progressão emocional real. Tudo se desenrola com uma previsibilidade enfadonha, até que o terceiro ato tenta, desesperadamente, virar o jogo com uma reviravolta que não apenas não convence, como sabota o que restava de conexão com o público.
Esse final é um caso emblemático de como uma virada mal construída pode arruinar qualquer esforço dramático anterior. Em vez de ressignificar a história ou lançar nova luz sobre os acontecimentos, a reviravolta surge deslocada, sem sustentação nos detalhes, como se fosse colada à força no roteiro. A sensação que fica é de que o filme traiu o próprio pacto narrativo com o espectador.
O maior problema de “Até a Última Gota” não está na sua intenção, mas na sua execução. O filme quer falar sobre injustiça, racismo, abandono estatal, violência doméstica, desigualdade médica, precarização do trabalho, descrença na justiça, marginalização materna e colapso psicológico. Quer falar sobre tudo, mas fala sobre tudo de forma rasa, com pressa, com urgência fake e sem olhar para os personagens como seres humanos de fato. São peões manipulados para conduzir uma fábula sombria, que não tem coragem de mergulhar onde realmente dói.
Perry, mais uma vez, se mostra um cineasta de ideias importantes e execução confusa. Seu olhar para o drama social continua preso a estereótipos, a figuras rasas que não se sustentam como metáforas nem como gente. E, um filme que exige nuances, ele entrega apenas caricaturas movidas por sofrimento mecânico.
“Até a Última Gota” é o tipo de obra que desperdiça o próprio potencial. Tinha um ponto de partida poderoso, uma atriz central capaz de carregar complexidade, um argumento que dialoga com o agora. Mas, em vez de confiar na força das entrelinhas, opta por sublinhar tudo com tinta grossa. E aí perde justamente aquilo que poderia tê-lo transformado num filme urgente, necessário e inesquecível: a verdade.
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