Crítica: “Canina” (Nightbitch)

Se você já se sentiu à beira de perder a cabeça em meio à rotina cansativa da vida doméstica, “Canina” (Nightbitch) vai te dizer: “Calma, pelo menos você não virou um cachorro”. Ainda. Porque, no mundo de Marielle Heller, isso é uma possibilidade. Baseado no romance homônimo de Rachel Yoder, o filme mistura terror, comédia e surrealismo com uma dose de crítica social bem afiada. É, sem dúvidas, um dos filmes mais intrigantes de 2024 e não apenas porque temos Amy Adams latindo (sim, literalmente!).

O filme faz parte da programação do Festival do Rio. Para mais informações, basta clicar aqui.

Crítica: “Nightbitch” | Foto: Reprodução

No centro da história, temos “Mãe” (Amy Adams), uma ex-artista que largou a carreira para se dedicar exclusivamente ao filho enquanto seu marido (interpretado por Scoot McNairy) vive viajando a trabalho. Só que essa rotina doméstica opressora, ao estilo “você cuida da casa enquanto eu vivo aventuras corporativas“, começa a mexer com a sanidade de Mãe. O resultado? Ela passa a acreditar que está se transformando… em um cachorro. Isso mesmo, um cãozinho, com tudo que tem direito, de farejar coisas a afiar os dentes.

Agora, por mais bizarro que isso possa parecer, o enredo é uma metáfora sobre as expectativas sufocantes que a sociedade coloca sobre as mães. “Nightbitch” é, antes de tudo, um grito sufocado pela perda de identidade e a transformação pessoal imposta pela maternidade. Se você já ouviu o termo “ser mãe é uma metamorfose”, bem, o filme leva essa ideia ao pé da letra — e a um nível totalmente novo.

A atuação de Amy Adams é o verdadeiro show aqui. Sério, se tem algo que esse filme faz é mostrar o quanto Adams domina sua arte. Ela consegue equilibrar o caos mental com a vulnerabilidade de uma mulher tentando não perder sua essência, tudo isso enquanto começa a se ver como um ser de quatro patas. Eu sei, parece insano — e é! — mas é justamente nesse absurdo que o filme encontra sua força. Adams entrega uma performance que é um misto de comédia e tragédia. E, honestamente, se ela não for indicada ao Oscar por esse papel, a Academia está dormindo no ponto. Porque, veja bem, não é todo dia que você vê uma atriz equilibrando maternidade, crises existenciais e… instintos caninos.

Sim, eu sei que você está se perguntando: “Mas por que um cachorro?”. Porque “Canina” não é só sobre maternidade, é sobre como as mulheres muitas vezes se sentem desumanizadas, reduzidas a instintos básicos, presas em rotinas repetitivas e exaustivas. E a metáfora é clara: ser mãe, em muitos momentos, é lidar com essa transformação — e se perder no processo. O marido aqui é o pai “disneylândia”, aquele que só aparece para os momentos divertidos, enquanto a mãe carrega todo o peso emocional e físico. Quem é que nunca sentiu o peso de fazer tudo enquanto o outro apenas observa?

A direção de Marielle Heller faz um excelente trabalho em balancear o humor com a tensão. “Nightbitch” é ao mesmo tempo hilário e perturbador. A sensação de desconforto vai crescendo à medida que a transformação da personagem vai tomando rumos cada vez mais literais. O filme não tem medo de fazer o público encarar a realidade por trás das cenas absurdas: a vida de muitas mulheres se parece mais com um looping de sacrifícios do que com um conto de fadas.

Mas, nem tudo é perfeito. Em alguns momentos, a metáfora canina do filme pode parecer exagerada, e o terceiro ato acaba caindo um pouco na repetição, perdendo um pouco da originalidade que marca o início. Ainda assim, “Nightbitch” se destaca pela sua ousadia.

Se tem um personagem que merecia mais destaque, é a stripper. É uma pena que ela não seja a protagonista. Afinal, ver uma mulher lutando para encontrar sua liberdade e identidade enquanto se transforma em um cachorro pode ser interessante, mas e aquela que vive em uma realidade ainda mais crua, sem o “luxo” de tempo para colapsos caninos? Uma perspectiva fascinante que poderia ter sido mais explorada.

“Canina” vale a pena?

O filme vai polarizar opiniões. Muitos vão amar o humor sombrio e a crítica incisiva à maternidade e à identidade feminina; outros, especialmente o público masculino (que, vamos combinar, pode não se ver tão bem representado), podem se sentir distantes da narrativa. Mas uma coisa é certa: o impacto emocional e a reflexão que ele provoca vão ressoar por muito tempo após os créditos subirem. Com uma direção corajosa de Marielle Heller e uma Amy Adams no seu auge, “Nightbitch” pode até ser alienante para alguns, mas é, sem dúvida, um dos filmes mais interessantes do ano. Não assista pelo trailer absurdo, assista pelo soco emocional que ele traz escondido nas entrelinhas.

Avaliação: 4 de 5.
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