“KM2” não é só um novo capítulo na discografia de Ebony: é um documento de identidade. Brutalmente honesto, tecnicamente refinado e emocionalmente denso, o álbum tensiona os limites do rap ao escolher o caminho mais árduo e, talvez por isso, o mais potente — o da autorrepresentação radical, sem concessões ao mercado nem à estética da suavização.
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Logo de início, o título do disco já aponta a direção: “KM2” é uma sigla afetiva para Queimados, na Baixada Fluminense, território que não aparece como pano de fundo, mas como pulsação rítmica e conceitual do projeto. A escolha não é estética, é política. Ebony ancora sua escrita no solo em que cresceu, mas não como gesto nostálgico; trata-se de uma busca arqueológica, quase visceral, por sentido, pertencimento e agência. Em vez de romantizar a origem, ela a documenta, a confronta e a reconfigura como potência criadora.
Do ponto de vista técnico, o álbum revela uma artista em domínio pleno do próprio fluxo. O controle sobre cadências, respiração e estrutura de verso mostra maturidade de composição. Ebony alterna com desenvoltura entre flows incisivos e trechos mais melódicos — como na surpreendente “Vale do Silício” — sem jamais soar desconectada de sua base lírica. Há um jogo frequente entre introspecção e ataque direto, entre a afirmação subjetiva e o embate com uma indústria que, como ela sugere em múltiplos versos, insiste em reproduzir arquétipos ou fórmulas pré-aprovadas.
A construção das faixas é marcada por um desenho cênico apurado. O uso de registros sonoros reais de Queimados — ruídos de rua, conversas, ambientes captados pela produtora Lara — insere o ouvinte dentro da geografia simbólica da obra. Não é ambientação, é enraizamento. Cada beat se conecta com esse ethos territorial, expandindo o conceito do álbum para além da voz e do texto. Nesse sentido, a engenharia sonora de “KM2” merece destaque: os instrumentais não buscam protagonismo, mas funcionam como tecido condutor da narrativa pessoal que Ebony se propõe a expor.
Liricamente, o disco atua como um espelho multifacetado. Ebony escreve com o rigor de quem compreende a função da palavra como afirmação de existência, e também como arma. Há momentos de confissão dolorosa, mas há também espaços de celebração e ironia. A faixa “Extraordinária”, com Kesia, é exemplar nessa costura entre memória, fé e afirmação. Inspirada pelas vivências de infância na igreja, a canção incorpora elementos melódicos e espirituais sem resvalar no messiânico. É memória usada como ferramenta de construção, não como cápsula sentimental.
Ao longo do álbum, o embate com Slipmami aparece como uma tensão periférica, mas estrategicamente posicionada. Não se trata apenas de “shade”; são versos com função retórica clara. Ebony aponta para disputas de narrativa, de espaço e de legitimidade na cena — e faz isso com firmeza, evitando a superficialidade dos ataques gratuitos. Em vez de resvalar para o diss vazio, ela insere as críticas dentro de uma moldura mais ampla sobre autenticidade e construção de persona no rap.
Ainda assim, “KM2” não é imune a imperfeições. Melodicamente, o disco é menos inventivo do que seu antecessor. A aposta em bases mais minimalistas e diretas, por vezes, reduz a plasticidade das faixas. Em certos momentos, há uma sensação de linearidade harmônica que, embora coesa com o tom introspectivo, poderia ser tensionada com escolhas melódicas mais ambiciosas. Isso, no entanto, não compromete a solidez do conjunto — apenas sinaliza uma direção estética que favorece o texto e a mensagem em detrimento de um dinamismo sonoro mais amplo.
O álbum ainda flerta com o rótulo de conscious rap, mas sem se prender a ele. O que se escuta em “KM2” é um retrato completo da experiência negra e feminina na periferia — e isso inclui desejo, status, poder e conflito. Ebony rejeita a ideia de que consciência se resume a didatismo ou denúncia explícita. Em vez disso, oferece um discurso plural, que revela que ser consciente também é narrar a própria complexidade sem filtro.
A estrutura narrativa do álbum é circular: as faixas “KM2” e “Roubando Livros” funcionam como marcos de entrada e saída que dialogam em tom e discurso. A possibilidade de escuta em loop reforça a noção de ciclo — de repetição, sim, mas também de recomeço. É um efeito formal que espelha o próprio movimento da artista: a cada faixa, Ebony parece morrer e renascer, tropeçar e levantar, hesitar e se afirmar.
“KM2” é, portanto, mais que um disco: é um mapa. Um inventário de dores e sonhos, medos e superações, ruídos e silêncios. Um gesto artístico que busca não apenas representar, mas reinventar os códigos do rap nacional a partir da perspectiva de uma mulher preta que escreve, canta e desafia o tempo inteiro. Se Ebony ainda busca respostas, o que ela entrega aqui já é suficiente para colocá-la entre os nomes mais relevantes — e mais necessários — da música brasileira atual.
Nota: 80/100
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