Existe algo de profundamente inquietante em “Enterre Seus Mortos”. Marco Dutra constrói um universo onde a morte não é um evento, mas uma rotina. Edgar Wilson, interpretado por um Selton Mello em estado de absoluto desconforto existencial, vive entre carcaças e silêncios, em um ofício que combina o banal e o sagrado. Ele recolhe corpos de animais mortos pelas rodovias da enigmática Abalurdes, uma cidade que parece existir à margem da razão. É um mundo que fede a fim dos tempos, mas também a apatia.

Ao lado do colega Tomás, vivido por Danilo Grangheia, um ex-padre excomungado que tenta sobreviver entre cinismo e culpa, Edgar se arrasta por dias sempre iguais. Até que algo muda, ou talvez apodreça de vez. Quando animais começam a cair do céu, o apocalipse deixa de ser metáfora e invade o real, dissolvendo qualquer fronteira entre fé e loucura. Dutra cria aqui uma das premissas mais intrigantes do cinema nacional recente: um mundo à beira do colapso narrado pelos que já perderam o sentido da vida.
Mas o filme, que parte de uma ideia potente, tropeça em sua própria ambição. O apocalipse, esse espetáculo de caos e simbolismo, cede espaço a uma trama sobre seitas e delírios religiosos que dilui a força da narrativa. Há momentos em que o roteiro se fragmenta em parábolas e metáforas dispersas, como se buscasse profundidade pela confusão. A tentativa de ser filosófico pesa, e o simbolismo excessivo sufoca o que poderia ser uma obra devastadora.
Selton Mello entrega uma das interpretações mais densas de sua carreira, entre o tédio e a insanidade, e Marjorie Estiano sustenta Nete com firmeza e sutileza. Ambos flutuam num cenário que mistura o grotesco e o espiritual, com uma fotografia que parece suar poeira e desespero. Há beleza em cada cena, e Dutra filma a decomposição com um olhar quase poético, mas também há perda. A estética impecável contrasta com um enredo que se dissolve como os próprios corpos que Edgar recolhe.
No fundo, “Enterre Seus Mortos” parece mais interessado em observar a decadência do homem do que em narrar o fim do mundo. É sobre a corrosão da fé, sobre o homem que tenta enterrar o caos e acaba soterrado por ele. Um filme que vive de fábulas apocalípticas e pulsa como uma parábola sombria sobre o fim da criação e sobre a culpa de quem a testemunha.
É um exercício estético poderoso, mas que parece perder o pulso narrativo no meio do caminho. Marco Dutra entrega um filme que provoca, mas raramente se conecta. É o tipo de obra que deixa mais perguntas do que respostas, e talvez seja exatamente essa a intenção.
“Enterre Seus Mortos”
Direção: Marco Dutra
Roteiro: Marco Dutra
Elenco: Selton Mello, Marjorie Estiano, Danilo Grangheia
Disponível: Nos cinemas a partir de 30 de outubro de 2025
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