Em “Homem com H”, Esmir Filho entrega mais do que uma cinebiografia de Ney Matogrosso. O filme é um manifesto de corporeidade, pulsação e reinvenção contínua, tanto no nível estético quanto no simbólico. Ao escolher a trajetória de um dos maiores ícones da música brasileira como ponto de partida, o diretor evita o lugar-comum da celebração nostálgica e aposta em uma experiência sensorial que busca captar o que há de mais indecifrável em Ney: seu poder de presença.
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A narrativa parte do interior do Mato Grosso do Sul e passa pela rigidez familiar, pela repressão da ditadura, pela explosão performática do Secos e Molhados e pela construção de uma carreira marcada pela radical liberdade estética. Tudo isso sem nunca se submeter à tentação da biografia ilustrada. O filme prefere sugerir a explicar, e nessa escolha está sua maior força. A vida de Ney não é reconstruída como um inventário cronológico de feitos e sucessos, mas como uma partitura visual e emocional centrada no corpo, na voz e na atmosfera que ele mobiliza ao estar em cena.
Esmir opta por uma abordagem híbrida que combina o formalismo da cinebiografia com lampejos de ensaio audiovisual. São momentos onde o tempo é suspenso e a narrativa linear dá lugar a cenas de pura evocação sensorial. Nesses trechos, o corpo de Ney, encarnado por Jesuíta Barbosa, se torna linguagem. O ator não imita, mas transfigura. Seu desempenho opera entre a reprodução do gesto conhecido e a criação de uma fisicalidade própria, que reinventa a figura de Ney como um arquétipo cinematográfico e não como um reflexo mimético do real.
O filme também se distancia dos vícios estruturais que comprometem grande parte das cinebiografias nacionais. Evita a exposição episódica, o desfile de participações especiais descontextualizadas e a ambição enciclopédica de registrar todos os marcos da carreira do biografado. Em vez disso, a montagem privilegia a continuidade emocional, sustentando o arco narrativo por meio de performances e fragmentos que ecoam o espírito de Ney Matogrosso em vez de simplesmente ilustrar sua vida.
A fotografia e o desenho de som trabalham em sintonia para evocar estados de espírito e climas que acompanham a transição do artista do anonimato à consagração. Em especial, os números musicais não aparecem como interlúdios ilustrativos, mas como elaborações dramatúrgicas fundamentais, funcionando como dispositivos de avanço narrativo e como janelas para o inconsciente coletivo que Ney ajuda a moldar.
Talvez o aspecto mais instigante de “Homem com H” seja sua recusa em cristalizar seu personagem em um único significado. Ney surge como mito e homem, corpo e símbolo, ferida e desejo. A tensão com o pai, os embates com o conservadorismo, a ressignificação da própria identidade de gênero e o impulso criativo incontrolável são tratados com sobriedade e, ao mesmo tempo, ousadia estética.
A performance de Jesuíta Barbosa é central para isso. Ao resistir à simples imitação, ele transforma o papel em um exercício de presença. Sua atuação quebra a lógica representacional convencional e impõe uma dinâmica própria em cena, como se Ney fosse um estado de espírito a ser alcançado, e não apenas um personagem a ser vivido. A fisicalidade incandescente que ele imprime carrega a potência de deslocar o espectador da expectativa documental para uma experiência quase mística de encarnação simbólica.
“Homem com H” é uma obra que compreende que biografar Ney Matogrosso não é contar sua história, mas tentar decifrar sua combustão. Ao fazer isso com inteligência formal e sensibilidade artística, o filme não apenas reaviva a figura do artista para novas gerações, como redefine os contornos do que uma cinebiografia brasileira pode ser. É uma obra de exceção dentro de um formato frequentemente engessado. E, talvez por isso, se imponha com tanta força.
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