Existe um tipo de filme que tenta flertar com o delírio solar, mas tropeça nos próprios pés tentando parecer coerente demais. “Hot Milk” nasce de uma literatura impregnada de calor, desconforto e subjetividade, mas o que chega à tela é uma adaptação hesitante, incapaz de confiar no próprio absurdo, no próprio silêncio, na própria desordem.
Confira a programação de junho da Mostra Cine Guerrilha

A trama aponta para conflitos potentes. Uma filha à deriva, sufocada por uma mãe doente, ambas presas em um cenário que parece mais febril do que turístico. A Espanha aqui não é um refúgio, é uma armadilha disfarçada de paraíso, e o calor não serve só como ambientação, mas como corrosão emocional. Mas o que poderia ser uma experiência sensorial e íntima vira um drama engessado, metódico demais para ser perturbador, tímido demais para ser estranho de verdade.
Falta coragem. É como se cada decisão de direção estivesse pedindo desculpas por tentar algo fora do lugar. A adaptação parece assustada com a própria fonte, como se temesse que a densidade literária pudesse espantar um público acostumado a respostas fáceis. O que surge daí é um filme que explica demais e sente de menos. A escolha por normalizar o que era enigmático no livro transforma personagens outrora ambíguos em figuras sem pulso, rasas, previsíveis.
Visualmente, o filme entrega imagens elegantes, mas tudo é polido demais, como se o calor do deserto tivesse sido controlado com ar-condicionado estético. A luz, que poderia ser esmagadora, vira elemento decorativo. A aridez não contamina os corpos. O tempo não pesa nos diálogos. Falta peso. Falta estranheza. Falta risco.
Existe uma tentativa evidente de estruturar a narrativa a partir do deslocamento emocional da protagonista. Mas esse deslocamento exige uma interioridade que o filme não consegue traduzir. O resultado é um vazio onde deveria haver confusão, uma ordem onde a desordem faria mais sentido. A tensão entre mãe e filha, que deveria sustentar o arco emocional do filme, acaba se apoiando em diálogos funcionais, sem rachadura, sem fissura, como se o texto estivesse mais preocupado em esclarecer que em provocar.
E aí está o problema central. “Hot Milk” tem medo de provocar. Medo de ser desconfortável, de ser esquisito, de abandonar o formato narrativo linear para mergulhar na imprecisão dos sentimentos que retrata. A experiência emocional se perde justamente porque a obra se protege demais. Falta ruído. Falta delírio. Falta tudo o que o cinema pode oferecer quando decide confiar na força da imagem acima da segurança do roteiro.
É um filme que caminha sobre a areia quente, mas calçado. E cinema assim não queima. Só marca passagem.
Fique por dentro das novidades das maiores marcas do mundo! Acesse nosso site Marca Pop e descubra as tendências em primeira mão.