“Licorice Pizza”, escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson, é uma peça rara de cinema que propõe uma narrativa fluida, atmosférica e tonalmente desafiadora, que desestrutura o convencionalismo dos filmes coming-of-age ao mesmo tempo em que investe em uma estética emocional profundamente nostálgica. Lançado originalmente em 2021, o filme chegou ao catálogo da MUBI em maio de 2025.
“Manifesto Musical”: Henrique e Juliano farão show no Allianz Parque, em SP

A trama se desenrola no Vale de San Fernando, em 1973, acompanhando a trajetória de Alana Kane, vivida por Alana Haim, e Gary Valentine, interpretado por Cooper Hoffman. O ponto de partida da relação entre os dois é imediatamente dissonante: ela tem 25 anos, ele 15. Essa diferença etária é mais do que um dado narrativo. É o elemento disruptivo que faz com que a estrutura do filme funcione num campo de constante ambiguidade ética e emocional. Anderson evita o julgamento fácil e insere os personagens em um universo onde a idealização juvenil colide com os ruídos morais da idade adulta. O filme não nega a estranheza do vínculo, mas tampouco se entrega a uma lógica punitiva. A tensão está justamente no desconforto de não haver resolução moral clara, o que faz de “Licorice Pizza” uma obra intrinsecamente provocadora, mesmo quando se apresenta como despretensiosa.
A mise-en-scène é exemplar. A câmera de Anderson adota uma fluidez quase documental, explorando planos-sequência e movimentos suaves que acompanham os personagens com familiaridade íntima. Cada quadro parece respirar junto com eles. A cinematografia de Michael Bauman, em colaboração com o próprio Anderson, captura com precisão o calor visual da década de 1970, usando grãos visíveis, cores terrosas e luz natural para estabelecer uma estética analógica coerente com a natureza evocativa do filme. A trilha sonora, composta por uma curadoria sofisticada de faixas da época, reforça a sensação de tempo suspenso. Seu uso nunca é ilustrativo, mas dramatúrgico: molda o espaço emocional das cenas com precisão quase coreográfica.
A atuação do elenco é essencial para sustentar a proposta. Alana Haim entrega uma performance intuitiva, cômica, vulnerável e reativa, capaz de compor uma personagem em constante deslocamento, sempre em busca de um lugar simbólico onde possa se sentir adulta sem abandonar o terreno instável da juventude. Cooper Hoffman, em sua estreia, prova-se surpreendentemente sólido. Anderson não o dirige como uma réplica de Philip Seymour Hoffman, mas como um corpo narrativo novo, moldado com afeto e cuidado, capaz de carregar cenas com timing cômico, energia adolescente e uma estranha, mas autêntica, vulnerabilidade. A química entre os dois, embora problematizada pelo contexto de idade, opera com naturalidade cênica e densidade dramática, compondo uma relação que nunca se estabiliza em um formato romântico tradicional.
Bradley Cooper, em uma breve participação como Jon Peters, oferece um momento de pura dissonância tonal que serve como anticlímax narrativo e síntese do caos implícito na vida adulta. Outros personagens transitam pelo filme como figuras episódicas, em uma estrutura fragmentária que remete diretamente a “Era Uma Vez… em Hollywood” e “Jovens, Loucos e Rebeldes”. Esses encontros episódicos ampliam o escopo da narrativa e reiteram a condição errante dos protagonistas, que circulam por um mundo em constante movimento, onde tudo é temporário e nada garante permanência. Essa lógica anti-climática é deliberada: não há progressão tradicional, apenas deslocamento emocional e geográfico.
A dramaturgia de Anderson é pontuada por silêncios significativos, gestos ínfimos e uma atenção rigorosa ao comportamento. Um simples reposicionamento de câmera ou um olhar entre personagens pode condensar mais significado do que longos diálogos expositivos. A sequência em que Alana se vê entre garotos adolescentes e um homem adulto disfuncional é exemplar: sem precisar sublinhar, o diretor comunica a crise existencial da personagem, presa entre dois polos de masculinidade que revelam sua inadequação. A cena, como outras ao longo da projeção, é construída com economia de meios e sofisticação de intenção.
“Licorice Pizza” resiste a interpretações fáceis. Seu objetivo não é entregar respostas, mas sim capturar um estado de espírito. É uma obra sobre descompasso, sobre o que se sente antes de saber nomear, sobre o momento em que o amor parece possível e impossível ao mesmo tempo. A fluidez tonal do filme é ao mesmo tempo sua maior qualidade e sua maior provocação: ora funciona como uma comédia romântica difusa, ora como um retrato amargo de um tempo que já carregava em si a falência de suas promessas. É um cinema de interstícios, que habita o entre-lugar das certezas, revelando-se não por acúmulo de eventos, mas por atmosferas emocionais que se sedimentam lentamente.
O filme só funciona porque Paul Thomas Anderson o constrói com o olhar de alguém que compreende profundamente o valor da leveza como linguagem e da ambiguidade como forma narrativa. Ao contrário de um discurso nostálgico convencional, “Licorice Pizza” problematiza a própria idealização da juventude, inserindo nela todas as suas contradições, seus limites éticos e seus desvios emocionais. E faz isso com uma precisão formal rara, que transforma pequenos momentos em grandes experiências cinematográficas.
É, nesse sentido, uma das obras mais elusivas e desconcertantes de sua filmografia. Aparentemente simples, mas infinitamente articulada. Um filme que se desdobra a cada revisão e que recusa a fixidez. “Licorice Pizza” é, em essência, sobre o que escapa, sobre aquilo que está em trânsito, sobre o que não se resolve. Talvez por isso, funcione tanto.
Fique por dentro das novidades das maiores marcas do mundo! Acesse nosso site Marca Pop e descubra as tendências em primeira mão.