“Lispectorante”, longa-metragem dirigido por Renata Pinheiro, inscreve-se em uma linhagem autoral do cinema brasileiro contemporâneo que conjuga o realismo subjetivo com estruturas narrativas fragmentadas, apostando na disjunção temporal como recurso formal e temático. A protagonista, Glória Hartman (Marcélia Cartaxo), é apresentada como uma figura em desagregação, cuja trajetória pós-divórcio expõe não só a precariedade material e simbólica de sua existência, mas também um desejo latente de reinvenção poética diante do colapso de suas referências pessoais e profissionais.
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A antiga residência de Clarice Lispector, mais do que locação, é instaurada como zona de liminaridade entre a memória e o delírio. Esse espaço-limite serve como catalisador de uma jornada marcada por elipses oníricas, onde a dimensão do tempo é sistematicamente desconstruída. A diretora opta por uma abordagem onde passado, presente e futuro coexistem no mesmo plano diegético, sugerindo uma suspensão cronológica que ecoa tanto os modos de escrita lispectorianos quanto os labirintos temporais do cinema moderno. Há um evidente recorte hermenêutico no uso do tempo: o passado não retorna como lembrança pessoal, mas como lastro mítico habitado por figuras como Carmen Miranda e a própria Clarice que passam a operar como espectros orientadores na travessia de Glória.
A personagem principal se constitui, portanto, como médium de uma sensibilidade que tensiona os limites entre a existência concreta e a fabulação artística. Sua deriva pelas ruas do Recife não é apenas geográfica, mas também metafísica um deslocamento que obedece menos à lógica da causalidade e mais à da contaminação simbólica. A mise-en-scène, cuidadosamente composta, transforma a cidade em superfície semiótica, povoada por signos do passado e resíduos de uma cultura que insiste em pulsar sob o asfalto e os escombros. Cada plano é arquitetado para amplificar a sensação de que o espaço urbano está em constante estado de transfiguração perceptiva, como se a própria câmera vacilasse entre o registro do visível e a projeção do inconsciente.
Marcélia Cartaxo, cuja trajetória histórica no cinema brasileiro a posiciona como figura icônica, atua com rara contenção expressiva, convertendo gestos mínimos em camadas densas de significação. Sua Glória jamais recorre ao exagero dramático; é no silêncio, na hesitação e na suspensão que se delineia a potência de seu colapso. A performance ressoa como homenagem ao ethos do artista marginal, aquele que, mesmo diante do abandono estrutural, insiste em produzir e sonhar. “Lispectorante” recusa, nesse sentido, qualquer discurso triunfalista: trata-se de uma ode ao fracasso como condição de sensibilidade, e à criação como forma de resistência ao apagamento.
A adesão ao discurso lispectoriano não se dá por via de transposição direta, mas por osmose estética. A obra de Clarice perpassa o filme como atmosfera, como um campo de força que contamina a montagem, a estrutura narrativa e os próprios diálogos, que frequentemente oscilam entre a introspecção filosófica e o delírio literário. A intertextualidade jamais é gratuita ou expositiva: é vivida como forma de escrita do mundo, uma maneira de ver o invisível que pulsa sob o cotidiano.
“Lispectorante” é, assim, um filme de camadas. A primeira superfície é a do drama existencial, ancorado em questões como o envelhecimento, o luto, a solidão e o desmonte das utopias artísticas. Mas há outras zonas de leitura possíveis: a cidade como corpo em ruína, o tempo como matéria plástica, o feminino como território de reinvenção simbólica, e o gesto artístico como ritual de sobrevivência. A obra convoca o espectador a um pacto de atenção, exigindo não apenas entrega emocional, mas escuta simbólica e sensibilidade estética.
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