Crítica: Madonna, “Erotica”

Em outubro de 1992, Madonna lançou uma granada. Erotica veio acompanhado do polêmico livro “Sex“, e juntos eles foram um soco direto no estômago moralista da sociedade. E mesmo três décadas depois, ainda reverberam. Erotica, o álbum que completou 32 anos, voltou ao spotlight com faixas icônicas sendo trazidas à tona na “The Celebration Tour“. Entre elas, “Bad Girl”, nunca antes incluída em turnês, agora renasce com um frescor surpreendente, provando que o tabu, quando bem trabalhado, nunca envelhece.

Crítica: Madonna, “Erotica” | Foto: Reprodução

Madonna, no auge de sua ousadia, criou um álbum que não é só sobre sexo. Erotica é um manifesto sobre desejo, poder e vulnerabilidade, envolvido em uma sonoridade que flerta descaradamente com o hip-hop, house e até o new jack swing. Misturar gêneros? Pra Madonna, isso não era ousadia, era rotina. Trabalhando com Shep Pettibone e André Betts, ela conseguiu dar vida a um álbum que, ao contrário de muitos da época, não só sobreviveria ao tempo, mas influenciaria uma legião de artistas que viriam depois, Britney Spears, Christina Aguilera e Janet Jackson que o digam.

E aí entra a persona de Mistress Dita, a domme que Madonna encarnou, inspirada pela atriz alemã Dita Parlo. A provocação de Madonna não era apenas sonora, mas visual, criando um alter ego que se impunha em uma época que reprimia a liberdade sexual feminina. A sociedade foi pega de calças curtas, e “Erotica” fez questão de arrancá-las de vez. No entanto, o álbum também tem seu lado vulnerável, em canções que ressoam como confissões, revelando as feridas deixadas pela perda de amigos para o HIV. Uma rainha do pop, sim, mas uma humana complexa, marcada por suas experiências e por um mundo que ainda aprendia a lidar com suas sombras.

E aí está o truque de “Erotica”: é mais do que uma festa hedonista. Há profundidade, há camadas. Canções como “In This Life” expõem uma Madonna introspectiva, que coloca o dedo na ferida da epidemia de AIDS, enquanto faixas como “Deeper and Deeper” mantêm a pista de dança acesa. E por falar em pistas de dança, Pettibone e Betts conseguiram capturar aquela energia crua do underground, deixando o álbum vibrar com a autenticidade das ruas, mas com a sofisticação que só Madonna saberia dar.

Crítica: Madonna, “Erotica” | Foto: Reprodução (Sex Book)

A produção do álbum, por si só, merece aplausos. Gravado entre 1991 e 1992, “Erotica” nasceu entre as frustrações de sequenciadores e equipamentos que insistiam em falhar. Mas o perfeccionismo de Madonna e Pettibone prevaleceu, criando uma obra que, de forma surpreendente, se manteve pessoal, intensa, e muitas vezes, devastadoramente honesta. Quem ouviu só pela batida dançante, perdeu o subtexto, Madonna estava falando de sexo, sim, mas também de poder, de controle e, em última perspectiva, de liberdade.

No entanto, o álbum teve sua recepção mais modesta em termos comerciais, uma ironia para alguém que já tinha conquistado o mundo várias vezes. Mas essa “falha” só prova uma coisa: Madonna não estava interessada em agradar. O objetivo aqui era abalar. “Erotica” não foi feito para ser consumido de maneira passiva; é um convite (ou seria um desafio?) a olhar além da superfície. Talvez por isso, o álbum seja considerado subestimado. Ofuscado pelo livro “Sex“, ele demorou para ser visto pelo que realmente é – uma obra-prima camuflada em provocações.

Falando de provocação, a capa do álbum já dizia tudo: Madonna, em um close de olhos fechados e boca semiaberta, em um momento de prazer simulado. O título, rabiscado, reforça a estética crua e visceral do projeto. Era impossível passar despercebido, mesmo que o ouvinte estivesse decidido a ignorar o impacto. E não, a música não é secundária a isso. É parte da narrativa.

Crítica: Madonna, “Erotica” | Foto: Reprodução

A faixa-título é uma batida pulsante de desejo que, combinada com o clima jazzístico e ares de cabaré de faixas como “Secret Garden”, mostra a versatilidade sonora que Madonna estava disposta a explorar. Em “Fever”, um cover repaginado com uma sensualidade tão atmosférica quanto audaciosa, Madonna reafirma sua habilidade de recriar o familiar e transformá-lo em algo totalmente novo e provocativo.

O debate sobre se Erotica é o melhor álbum de Madonna é eterno. Muitos defendem que “Bedtime Stories” é seu grande momento de expressão artística. Mas ao colocá-los lado a lado, o que se vê são dois trabalhos complementares, quase cúmplices. Se “Erotica” é o ataque frontal, “Bedtime Stories” é a reflexão introspectiva que vem depois. Juntos, eles marcam o auge de uma fase expressionista, onde Madonna não só explorava tabus, mas os demoliu.

Ao longo de suas 14 faixas, somos desafiados a encarar não apenas os desejos mais primitivos, mas também as dores mais íntimas. E enquanto a sociedade da época tentava processar o impacto, Madonna estava lá, rindo por último. Porque se existe algo que “Erotica” provou, é que o choque pode passar, mas a arte verdadeira resiste.

Afinal, 32 anos depois, as faixas ainda ecoam, agora mais livres do que nunca, nas performances da “The Celebration Tour, enquanto uma geração que já não é mais a mesma redescobre o poder e a ousadia de uma mulher que, em 1992, ousou desafiar o mundo. E venceu.

Nota final: 98/100

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