“Memórias de um Esclerosado” articula, com notável domínio formal e sensível estrutura narrativa, uma autorrepresentação expandida do artista Rafael Corrêa, cuja trajetória íntima é ressignificada à luz do diagnóstico de esclerose múltipla recebido em 2010. No cerne do projeto está uma operação metalinguística: trata-se de um artista visual utilizando a linguagem cinematográfica para documentar, deformar, reinterpretar e, em última instância, dar conta da decadência física progressiva que acomete seu próprio corpo.
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A presença do trauma infantil torna-se uma figura simbólica fundamental, funcionando tanto como eixo estruturante da montagem quanto como alegoria do “retorno do reprimido”, que assume, ao longo do filme, contornos cada vez mais viscerais. A progressiva deterioração do corpo de Rafael é encenada não como perda, mas como transmutação subjetiva: suas limitações físicas não apenas alteram sua presença no mundo, como remodelam seu imaginário. Nesse sentido, o documentário se aproxima da tradição do cinema de invenção, no qual o corpo do autor e o aparato cinematográfico operam em conjunção para criar um espaço de fabulação entre o real e o simbólico.
O grande trunfo de “Memórias de um Esclerosado” reside justamente em sua recusa à unidimensionalidade. A esclerose múltipla, embora presente em cada plano como pulsação latente, jamais é tematizada de maneira reducionista. Pelo contrário, o filme concentra-se em deslocar continuamente o olhar: ora para a arte como ato de resistência, ora para a precariedade da acessibilidade urbana, ora para os vínculos afetivos que se esgarçam ou se fortalecem com o tempo. O documentário ganha densidade ao trabalhar a doença como campo de forças, algo que afeta não apenas o sujeito enfermo, mas todo o tecido social e afetivo ao seu redor. O que está em jogo, afinal, não é uma narrativa médica, mas a fabulação de uma identidade atravessada pela fragilidade e pelo desejo de permanência criativa.
A montagem opera como dispositivo subjetivo, acionando tempos descontínuos e organizando uma estrutura sensorial em que infância, presente e delírio coexistem. O uso do sapo como figura totem assume múltiplas camadas de sentido: é a culpa moral, a doença neurodegenerativa, a presença espectral que vigia Rafael em seus momentos de maior vulnerabilidade. A dramatização alucinatória da figura do sapo humanóide armado de bengala introduz um desvio narrativo potente, radicalizando a dimensão simbólica e distorcendo a fronteira entre real e alucinação. Tal gesto, embora desestabilize o equilíbrio do filme e rompa com o tom de observação inicialmente estabelecido, representa um dos momentos mais contundentes da obra, ao corporificar o medo, a culpa e a iminência da morte em uma entidade visual inesquecível.
A iconografia da decadência física é aqui tratada com rigor e ausência de autopiedade. A câmera não hesita em observar o corpo nu, o banho assistido, os gestos hesitantes, mas insere essas imagens num regime estético que jamais objetifica ou vitimiza. Trata-se, antes, de um cinema que se compromete com a experiência da existência em sua complexidade, e que reconhece no corpo enfermo um território expressivo legítimo, apto a gerar sentido, arte e discurso.
“Memórias de um Esclerosado” é, portanto, menos um retrato documental do adoecimento e mais uma operação ensaística sobre a potência da criação em meio à degradação. A alternância entre o humor corrosivo, o lirismo doméstico e o delírio poético faz do longa uma obra singular dentro do panorama recente do documentário brasileiro, afastando-se das convenções do gênero e aproximando-se de um cinema de autor que compreende a câmera como extensão da subjetividade um espelho que não apenas reflete, mas recria. É um filme que cresce à medida que avança, encerrando-se com intensidade dramática muito superior àquela com que se inicia, em um clímax visual e simbólico que tensiona os limites entre a realidade clínica e a ficção psíquica. Uma experiência profundamente autoral, cuja força reside justamente em sua recusa ao didatismo e em sua aposta na construção de uma poética da vulnerabilidade.
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