“The Ugly Stepsister” é uma perturbadora reinterpretação do conto de fadas “Cinderela”, reinventado aqui como um conto gótico sobre obsessão, feiura, maternidade disfuncional e padrões de beleza inatingíveis. Sob a direção de estreia de Emilie Blichfeldt, o longa funde o grotesco corporal à fábula clássica, oferecendo um híbrido entre drama psicológico e horror estético. O filme estreou no Festival de Sundance de 2025, abrindo a Seção da Meia-Noite, e foi posteriormente exibido na mostra Panorama da Berlinale. Após sua estreia internacional, chegou aos cinemas dos Estados Unidos em abril de 2025, ainda sem previsão de lançamento no Brasil.
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A narrativa acompanha Elvira, jovem desprezada pela aparência, pressionada pela mãe Rebekka a passar por cirurgias brutais na tentativa de competir com sua meia-irmã Agnes, a bela e talentosa enteada que ameaça roubar a atenção do Príncipe Julian. A estrutura do filme é clássica, com ambientação de época, mas a lente é contemporânea e crítica: a beleza é moeda de sobrevivência, e a monstruosidade não está nas personagens, mas nas expectativas sociais que moldam seus corpos.
O destaque técnico absoluto está no design de produção. O cenário de época é estilizado sem recorrer aos clichês fáceis de filmes de vestimenta, como cenas de espartilho sufocante ou erotização da estética vitoriana. O figurino é cuidadosamente pesquisado, inclusive evitando erros históricos comuns em filmes do gênero. O compromisso com a acurácia visual é um gesto de respeito ao espectador e um contraponto inteligente ao grotesco que se desenrola em cena.
A trilha sonora se destaca pela justaposição entre o antigo e o atual, o que reforça o principal subtexto do longa: os padrões de beleza podem mudar de forma, mas sua lógica de opressão permanece a mesma. A música atua como elemento narrativo, refletindo a tensão entre o tempo passado do conto e as inquietações atuais sobre o corpo feminino.
As atuações são um dos pontos mais sólidos da obra. Lea Myren entrega uma performance que transita entre fragilidade, raiva, vulnerabilidade e horror físico. A atuação não apenas sustenta a narrativa, mas se impõe sobre ela em diversos momentos, especialmente nas cenas mais gráficas. Mesmo com um texto que não oferece grandes complexidades psicológicas às personagens, o elenco eleva o material com intensidade.
O horror corporal, embora presente em poucos momentos, é impactante. As cirurgias realizadas em Elvira rudimentares, dolorosas, quase ritualísticas geram desconforto e funcionam como alegoria extrema para o que a sociedade exige do corpo feminino. A subversão do conto de fadas é, portanto, formal e temática. Agnes, por sua vez, é menos uma antagonista e mais um símbolo da lógica meritocrática da beleza: triunfar não é apenas natural, é inevitável.
A estrutura narrativa, no entanto, carece de ritmo em certos trechos. O segundo ato, especialmente, gira em torno dos mesmos conflitos sem apresentar novas tensões. A proposta de mergulhar na degradação emocional e física de Elvira é válida, mas a execução nem sempre sustenta o interesse com a mesma força que suas cenas mais viscerais. Ainda assim, o final estranho e desestabilizador reafirma o controle da diretora sobre sua proposta estética.
O longa acerta ao não oferecer heroínas ou vilãs puras. Todas as personagens femininas são agentes e vítimas de um sistema estético opressor. A moral da fábula, se é que existe uma, reside na crueza da pergunta: o que resta de nós depois que somos moldadas para agradar os outros?
“The Ugly Stepsister” não é um filme universalmente acessível. Seus momentos mais extremos e seu desconforto visual e temático afastarão parte do público. No entanto, como exercício de cinema de gênero e comentário sociocultural, é uma estreia ousada. A estética, o som, o design e a coragem da abordagem elevam a obra além do simples revisionismo de conto de fadas. É, acima de tudo, uma alegoria sombria sobre como a busca por beleza pode se tornar uma forma de autodestruição coletiva.