“Vingança”, longa de estreia da diretora Coralie Fargeat, é um thriller implacável que reinventa as convenções do subgênero rape and revenge com brutalidade estilizada e uma contundência feminista rara em obras dessa natureza. A trama parte de uma premissa conhecida: três homens ricos se reúnem anualmente em um retiro de caça no deserto, mas dessa vez, um deles leva sua amante, Jen (Matilda Lutz). O que se segue é um ciclo de violência desencadeado por um estupro e uma tentativa de silenciamento, que transforma Jen de objeto de desejo em catalisadora de carnificina e resistência.
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À primeira vista, o longa parece seguir o molde desgastado de produções como “Eu Cuspi no Seu Túmulo”, mas Fargeat conduz sua narrativa por uma via de provocação estética e crítica social. Não há qualquer erotização da violência sexual. Em vez disso, o filme expõe, de forma metafórica e incômoda, as justificativas misóginas que muitas vezes sustentam o imaginário coletivo em torno de vítimas de abuso. A sequência da violação (marcada por sua ausência gráfica) é sucedida por uma das imagens mais simbólicas e repulsivas do cinema recente: a ingestão lenta de uma barra de chocolate, que sintetiza com crueza o fetiche, a banalização e o consumo da dor alheia.
O longa não busca conforto. A proposta é incomodar, tensionar e desgastar. O uso do deserto como cenário amplifica a sensação de isolamento e vulnerabilidade. A paleta saturada, os closes extremos e o desenho de som acentuado contribuem para um ambiente quase alucinatório, em que a vingança assume proporções míticas. Jen, marcada pela violência e reconstituída quase como figura sobrenatural, se converte numa força de destruição que desafia a lógica dos seus agressores homens que acreditavam ter total controle sobre ela.
Matilda Lutz entrega uma performance intensa, sem sentimentalismo gratuito, transitando de símbolo erótico a guerreira sanguinária com fisicalidade e foco. A direção evita transformá-la em caricatura: cada ferida, cada respiração e cada reação são retratadas com impacto físico. O corpo feminino, geralmente palco de objetificação nesses thrillers, aqui é reconfigurado como território de resistência, reconstruído literalmente a partir do trauma.
Embora seja visualmente exuberante e calcado em uma estilização que beira o surreal, “Vingança” não abdica da crítica. A condução da narrativa por uma mulher oferece uma lente diferenciada sobre um gênero historicamente dominado por homens e marcado por uma ambiguidade moral desconfortável. A diferença está na intencionalidade. Fargeat não propõe um espetáculo de tortura, mas uma catarse visual e política.
É também um filme que provoca reflexões complexas ao expor, de forma frontal, o comportamento masculino banalizado e, muitas vezes, interiorizado. Os algozes de Jen não são monstros de fábula: são homens comuns, com desculpas ordinárias, que veem sua violência como parte de um jogo de poder. Ao virar o jogo, o filme não oferece redenção, apenas a força destrutiva da vingança um acerto de contas com implicações muito além do literal.
“Vingança” se estabelece, portanto, como um marco moderno dentro do seu subgênero. Um exercício estético e político que transforma o arquétipo da vítima em sujeito. Brutal, estilizado e incômodo, é o tipo de filme que rejeita passividade e exige do espectador mais do que julgamento: exige posicionamento.
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