“As Mortas”, dirigida por Luis Estrada e lançada na Netflix, é daquelas séries que não se contentam em apenas contar uma história, mas em cutucar velhas feridas de uma sociedade que ainda hoje vive sob fantasmas muito semelhantes. Inspirada no livro de Jorge Ibargüengoitia e no caso real das irmãs Poquianchis, a produção se apresenta como uma mistura de sátira, humor negro e drama, mas o que fica em sua reta final é um retrato brutal de poder, violência e decadência. O México dos anos 50 e 60 ganha contornos quase míticos na tela, mas a tragédia das irmãs Arcángela e Serafina Baladro não é lenda: é consequência.
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O último episódio expõe a ruína inevitável de um império erguido sobre corrupção, exploração e sangue. Durante boa parte da narrativa, Arcángela e Serafina transformam bordéis em um negócio milionário, sempre blindadas por militares, políticos e uma imprensa que mais alimentava o espetáculo do que buscava justiça. Essa engrenagem começa a ranger quando os crimes deixam de ser invisíveis. A morte de Blanca, jovem que não sobrevive a um procedimento clandestino, é o gatilho que faz tudo desmoronar. Assim como no realismo trágico de Gabriel García Márquez, em que pequenas fatalidades prenunciam catástrofes maiores, aqui um erro aparentemente pontual abre caminho para a revelação de um sistema inteiro de horrores.
A investigação policial avança e, com ela, a imagem das irmãs se transforma. O que antes era poder e influência se converte em desconfiança, até que os corpos enterrados em suas propriedades vêm à tona. A partir desse momento, a série abraça o tom de denúncia social, sem jamais perder a ironia que permeia a obra original de Ibargüengoitia. O sensacionalismo da imprensa, representado pelo jornal Alarma!, cria a figura quase folclórica das “assassinas de Guanajuato”, mas o espetáculo midiático não apaga a dimensão humana das vítimas.
O julgamento sela o destino das Baladro. Condenadas por múltiplos assassinatos, cárcere privado e exploração sexual, elas recebem longas penas de prisão. Arcángela, a mais fria e estratégica, carrega o peso das decisões que arruinaram o império, enquanto Serafina, mais instável e impulsiva, é retratada como cúmplice que se perde entre lealdade e desespero. A ironia maior é que o mesmo sistema que as protegeu durante anos é o que as engole quando se tornam incômodas. No fundo, não há justiça plena: há uma troca de peças em um jogo maior de corrupção e poder.
O epílogo da série deixa claro que o cárcere não elimina completamente o alcance das irmãs. Mesmo presas, elas continuam movimentando negócios dentro da prisão, quase como ecos de uma realidade em que o crime se adapta e sobrevive às grades. O contraste fica evidente quando comparado ao destino de Simón Corona, vivido por Alfonso Herrera. Caricato, trágico e oportunista, ele escapa de punições severas, um lembrete incômodo de como a masculinidade tóxica, em tantas sociedades latino-americanas, se camufla e atravessa ilesa em meio ao caos.
O desfecho de “As Mortas” dialoga com outras obras que exploraram a relação entre crime, poder e espetáculo. Há ecos de “Cidade de Deus”, quando o crime se torna notícia e produto cultural, e até de “Narcos”, em que a fronteira entre o fascínio pelo criminoso e a denúncia social se mistura em narrativas televisivas. Estrada sabe que, ao adaptar o romance de Ibargüengoitia, não se tratava apenas de revisitar uma história do passado, mas de criar um espelho para o presente.
A prisão das irmãs Baladro não fecha a ferida, apenas aponta para o círculo vicioso que permitiu que elas prosperassem por décadas. Corrupção, exploração de mulheres e violência institucional não pertencem a um México distante dos anos 60. São questões que atravessam fronteiras e continuam atuais. Ao terminar “As Mortas”, o espectador entende que o verdadeiro horror não está apenas nos crimes das protagonistas, mas em tudo o que possibilitou sua existência.
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