O novo álbum de Iúna Augusto, “Canteiro de Raiz”, representa um marco na música contemporânea brasileira, trazendo à tona a profundidade e a riqueza das tradições orais negras e indígenas. Em uma entrevista exclusiva ao Caderno Pop, Iúna discorre sobre as influências culturais e musicais que moldaram o projeto, a colaboração com artistas tradicionais, e o processo de integrar instrumentos contemporâneos e tradicionais.
Caderno Pop: Iúna, poderia nos contar um pouco sobre o conceito por trás do seu novo álbum, “Canteiro de Raiz”, e a ideia de “canteiro” na sua música?
Iúna: Idealizei uma poética que pudesse realçar o valor dos cantos de tradições orais negras. Queria falar sobre como estes cantos, além de registrar a história de vários povos, fortalecendo suas memórias, também atravessam gerações emitindo ensinamentos, conceitos, fundamentos e ciências, sem perder a função de divertir, acalentar e até mesmo religar. Além de registrar alguns grupos e pessoas que são referências dessas tradições em fonograma, experimentei também como elas se transformam ao passar por mim que, apesar de me propor a estudá-las e vivenciá-las, tenho maior experiência na música pop/contemporânea/urbana dos instrumentos eletrificados. A palavra ‘canteiro’ me remete a um espaço urbano onde, em meio ao asfalto e concreto, pessoas cultivam plantas e ervas que fornecem alimento e cura. Esse paralelo entre ‘canteiro’ e ‘canto’ reforça a ideia de cultivar raízes culturais através da música, rompendo barreiras sociais e contando histórias próprias.”
Quais foram as principais influências musicais e culturais que moldaram “Canteiro de Raiz”? A primeira influência foi a Capoeira Angola, tradição construída principalmente pelos povos bantos e indígenas no Brasil. Vivencio a capoeira desde 2013 no Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros. Considerando a contribuição desses povos para a cultura brasileira, quis me aprofundar e conhecer mais sobre outras tradições que também foram plantadas por esses povos. Foi aí que me aproximei mais da Congada — tradição que faz parte da memória da minha família materna e da minha infância. Também me aproximei do Batuque de Umbigada — que hoje em dia ainda é cultivado nas cidades de Tietê, Capivari, Piracicaba e Rio Claro — e da musicalidade dos terreiros bantos. Juntei essas influências com outras, também de origens negras e indígenas, absorvidas desde o início da minha trajetória na música, como o soul, o rap, o jazz, o funk, o samba e o reggae.
Como a Capoeira Angola e outras tradições afro-indígenas influenciaram as músicas e a mensagem do álbum? As letras das músicas que escrevi trazem conceitos e fundamentos disseminados por elas, além de citações de canções das próprias tradições. A escolha estética das melodias e das formas de texto, a instrumentação, os arranjos, tudo foi inspirado nelas. Na segunda parte da música ‘IÊ’, por exemplo, faço um chamado para o despertar coletivo utilizando termos que são comuns no universo da Capoeira Angola. Esses termos aparecem no dia a dia do capoeirista, no falar, no cantar e no jogar. Assim, qualquer pessoa que vivencia a capoeira irá identificar e compreender o que estou falando. Quem for leigo no assunto pode se sentir instigado a estudar, procurar saber mais e aumentar seu repertório cultural.
“Canteiro de Raiz” conta com a participação de diversos grupos tradicionais e artistas. Como foi trabalhar com esses convidados e o que eles trouxeram para o projeto? O que mais me marcou foi a experiência de lidar com pessoas negras e indígenas que se sentem apropriadas, seguras e conscientes de suas identidades e da relevância de suas contribuições para a cultura brasileira e para um mecanismo de ressignificação dos nossos corpos no mundo, contrariando as condições que nos foram impostas por uma sociedade pautada no racismo. Fiel ao pensamento de ‘nada sobre nós, sem nós’, fiz questão de envolver pessoas das comunidades que pertencem e cultivam essas tradições. Cheguei com muito cuidado por saber que estava lidando com o que é sagrado para muitas delas, tentando entender como fazer isso sem descaracterizar o que é tão valioso para essas pessoas. Até tive receio de encontrar barreiras conservadoras, mas a resposta foi a compreensão que os mais velhos e as mais velhas têm de que o novo e o velho caminham juntos em espiral. O que eu penso ser o novo agora não necessariamente é para eles e elas. Encontrei pessoas muito dispostas e disponíveis para recriar, sábias a ponto de me instruir como recriar sem deixar perder as essências. E foi vitalizador perceber que movimentá-las do contexto dos terreiros e das ruas para o estúdio não alterou em nada a propriedade que elas têm sobre suas culturas.
Pode nos falar mais sobre a produção do álbum em parceria com o Selo Fervo e como foi o processo de integrar instrumentos contemporâneos e tradicionais? Escolhi trabalhar com o selo Fervo justamente por identificar que é uma equipe que já trabalha com tradições, tem estudos de como lidar com a parte técnica e burocrática disso, e se interessa pelas narrativas que fortalecem as tradições e as pessoas ligadas a elas. Estiveram integralmente abertos para ouvir minhas expectativas, e a imensa experiência do engenheiro de som Diego Techera foi indispensável para me orientar nos experimentos e escolhas. Foi imensamente gratificante, quando eu apresentava alguns desafios, ouvir do Diego: ‘Desse jeito eu não sei se dá certo, mas vamos tentar’. Juntar instrumentos tradicionais e contemporâneos não é algo novo; o desafio foi fazer isso de forma que expressasse quem eu sou, e não tenho dúvidas de que foi essa escuta ativa de ambos os lados que proporcionou resultados onde consigo identificar inovação e originalidade. Neste processo, o Gab Alves e a Aforju Rodrigues somaram muito ao se disponibilizar para estudar juntos, experimentar de várias formas, testar e escolher timbres.
“Canteiro de Raiz” é mais que um álbum; é um manifesto cultural que une tradição e modernidade, conectando o passado ao presente de maneira única e poderosa. Iúna, através de sua sensibilidade e respeito às tradições, conseguiu criar uma obra que é ao mesmo tempo inovadora e profundamente enraizada. É uma contribuição significativa para a música brasileira e um convite para que todos conheçam e celebrem a riqueza das tradições orais negras e indígenas.
Ouça em todas as plataformas digitais: https://lnk.fuga.com/iunaaugusto_canteiroderaiz
(Fotos: Romero Cruz)