Marcelo Falcão estreia carreira solo com álbum “Viver (Mais Leve que o Ar)”

Como costumam brincar os fãs de reggae, “coloca o capacete aí, que lá vem pedrada”. O termo é usado para descrever as mais empolgantes gravações do ritmo jamaicano e de outros gêneros musicais a ele relacionados (dub, ragga, rocksteady, ska etc.). E pedrada é o que não falta no primeiro álbum solo de Marcelo Falcão, que por 25 anos colocou voz, carisma, melodias marcantes e uma entrega imensa nos palcos a serviço de um grupo que pode ser incluído sem favor algum entre os três mais importantes do país de 1990 para cá.

Sua aguardada estreia individual trilha rotas por roots, rock, reggae, pop, hip hop, mar e ar, em receitas e vibes pessoais e intransferíveis. O legendário maestro e arranjador Arthur Verocai (Jorge Ben, Marcos Valle, Gal), que contribui com belíssima orquestração na épica faixa “Eu quero ver o mar”, sintetizou bem na observação que fez para Falcão: “Você fala as coisas sérias sem rancor”.

Marcelo Falcão avisa que está botando o bloco “na humildade”, usando a voz para “falar coisas direto do coração”, seguindo caminhos que foram se apresentando naturalmente ao longo dos últimos anos.

Mesmo envolvido com a turnê de despedida do grupo, ele foi acumulando ideias e esboços de canções em cerca de 650 arquivos gravados em celulares e outros equipamentos que seu irmão, Vinicius Falcão, cuidou de providenciar. A escolha do parceiro para produtor do disco saiu a partir de décadas de afinidade. Mas foi definida por um encontro casual no Baixo Gávea, no Rio de Janeiro, com Felipe Rodarte, que comanda, junto com Constança Scofield, o estúdio Toca do Bandido, fundado por Tom Capone (1966-2004) de histórica importância para o Rappa e para o pop/rock nacional. “Sou timidão, mas quando os vi, pensei: ‘Ih, tá resolvido!’”, explica o cantor.

Felipe trabalhou em cima do material, com assistência do engenheiro Raphael “Moita” Dieguez, peneirando 47 arquivos. Felipe e Falcão, coprodutores, reuniram no Toca do Bandido uma espécie de clã entre amigos, colegas admirados há muito tempo, gente que sempre esteve por perto (ou junto, nos projetos paralelos de Falcão, como Locomotivos e Jet Dub System) e brothers. Band of brothers, quase literalmente.

Bino Farias, do Cidade Negra (irmão de Lauro Farias, ex-colega do Rappa), foi o escalado para a crucial função de contrabaixista e agraciado com o empréstimo a perder de vista de um dos  instrumentos da coleção de baixos de Falcão: um luxuoso Fender Jazz Bass de cinco cordas, indicação do saudoso João Carlos, dono da Johnny B. Good, de São Paulo, a mais famosa loja de discos de reggae do Brasil.

Na tecladaria, somaram-se o paralama honorário João Fera, em seu característico estilo percussivo, e Hélio Ferinha (sem parentesco), que também toca com o Cidade Negra, no comando de fender Rhodes e escaletas. Nos scratches, beats e efeitos, o DJ Negralha, vinte anos de carreira com o Rappa e sintonia fina com a chefia. Na percussão, ninguém menos que Marcos Suzano, com toda sua sutileza e expertise. Na bateria, o toque pesado do curitibano Felipe Boquinha, que vinha sendo titular das baquetas do Rappa desde 2013.

No naipe de metais, formado por Edésio Gomes (sax tenor), Eneas Pacifico (trompete) e Vinicius de Souza (trombone), conhecidos no meio musical gospel, valeu a concepção do produtor (e autor de arranjos “de boca”). Nada daquela pontuação discretinha, repetitiva; os sopros “cantam junto” e têm papel fundamental na identidade da canção, à moda de gravações clássicas jamaicanas de reggae roots e dub.

Falcão botou em prática muito do que aprendeu nos anos de janela, ralando e criando em estúdio com feras como Liminha, Bill Laswell, Dennis Bovell, como o uso sagaz de microfones diversos em uma mesma faixa. E também botou as manguinhas de fora tocando sintetizador, synth de baixo, violão, caixa de fósforo e a clássica “guitarra pica-pau” do reggae.

Essa guitarrinha está na contagiante abertura, “Hoje eu decidi”, com levada roots e um recado positivo que dá o tom, a boa vibe do trabalho. “Hoje eu decidi que vou colocar tudo de ruim pra fora”, professa, com a divisão original de sempre e atrevidos voos vocais.

“Sobre dores, eu posso contar/ Por mais que eu sofri, jamais vou revidar”, emenda a música seguinte, “Quando você olhar pra mim”, um ragga em fogo lento com leituras dúbias, “tríbias”, como brinca Falcão, sobre amor (“vai perceber que o único amor da vida fui eu”) e pessoas que não nos dão o devido valor. Menção honrosa pela inclusão do saboroso insulto “zé ruela” na letra.

A faixa 3, “Voar, flutuar”, é um poderoso chamado puxado por guitarra e fraseado épico dos metais. Na letra, entre possíveis alusões a versos dos tempos de Rappa, uma mensagem irresistível de amor e tesão por ela, a tal da vida, e quem mais o ouvinte quiser. O refrão: “Quando te vi pela primeira vez/ seu olhar me hipnotizou de vez/ Pergunto até hoje o que você fez/ Me apaixonei pra vida”.

Doze das 13 faixas levam a assinatura de Marcelo Falcão. A quarta, “Mais leve que o ar”, em parceria com o mestre pernambucano Lula Queiroga, tem scratches, concisão e grande apelo pop. “Ele escaneou minha alma”, elogia Falcão.

A quinta música, “Só por você”, proporciona pausa de refresco ragga e dub, com significativos 4’20’’ de duração. Declamando versos, Lula Queiroga reaparece emprestando o carisma a um grande momento do disco, “Viver” (a sexta faixa), uma das que Falcão construiu com palavras do pai, Ademir Custódio, engenheiro civil. “Viver é manter o coração ereto/ viver é respeitar todas as leis do afeto/ viver é melhor que sonhar”, reforça.

“Meu pai é um sábio. Tem um olhar diferente para todo tipo de assunto e também uma leveza de alma”, elogia Falcão. “O start do disco veio dele.”

Na faixa 7, “I don’t wanna be king”, sugerida por um email de Ademir, o clima é de slow jam/hip hop, mas com devoção à música acima de tudo, e a lição de humildade decorrente.

“Diz aí” trabalha muito bem alguns dos mais emocionantes elementos da música jamaicana, é um roots dub, com direito a escaleta, os metais em construção hipnótica e a participação de uma lenda vocal da ilha do reggae, Cedric Myton, integrante do mítico grupo The Congos. Rastafári praticante, ele até aceitou uma taça de vinho depois da emocionante gravação. E rasgou elogios a Falcão antes de partir para um show inesquecível de seu grupo no Circo Voador, em maio do ano passado: “Você é do futuro. Você pode até morrer amanhã, mas vai chegar no futuro”.

Na reta final do álbum, três faixas refrescam com ares marinhos as lufadas de temática social e inquietação espiritual. A primeira é “Meu caminho”, que Falcão, sempre homem de palco, fez já pensando no nirvana cênico a ser atingido; depois vem a grandiloquente – e citada lá no começo do texto – “Eu quero ver o mar”, quase oito minutos e meio com os luxos de Verocai e o toque guitar hero de Fernando Magalhães, do Barão Vermelho. E em seguida vem a pharrelliana “Gold Coast”, originariamente um voz e violão praiano de felizes tintas autobiográficas. “Fiz turnê na Austrália, e nessa região vi os brasileiros mais felizes que já encontrei pelo mundo. Também foi lá que conheci minha mulher”, conta Falcão.

A penúltima música, “Me entende” aproveita um poema do amigo Ricardo Palmira (filho da Tia Palmira, dona de um famoso restaurante em Guaratiba, zona oeste do Rio) e, com Fernando Magalhães esmerilhando na guitarra, não faria feio num show dos Wailers atuais. Tem tudo para chacoalhar multidões em festivais.

No encerramento, uma ideia elevada, que surgiu a partir da memória afetiva de Falcão, criado em família católica e fã do Jorge Ben de “Jorge da Capadócia (Oração a São Jorge)” e do Jorge Aragão que fez de “Ave Maria” peça essencial de seu repertório: uma regravação reggae, simples, sem firulas, de “Senhor, fazei de mim (Instrumento de Sua Paz)” (“Oração de São Francisco”). Com o coro formado pela mãe do cantor, Maria Selma, e as tias Ivonete e Maria das Mercês. “Elas são fervorosas, mas sem ‘pira’. Gosto do ‘papo bom’ da religião católica, apesar de hoje ter outras visões”, conta Falcão. “Onde houver ódio, que eu leve o amor/ onde houver ofensa, que eu leve o perdão”… Impossível pensar em capacete mais belo para se proteger das pedradas – as de verdade, não aquelas que fazem a alegria do povo do reggae.

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