O Racionais MC’s é um dos pilares da música brasileira, uma força que transcende gerações desde sua fundação em 1988. Formado por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, o grupo deu voz às periferias do Brasil e se tornou um marco na luta contra o racismo e a desigualdade social. Suas letras, repletas de narrativas contundentes, denunciam a brutalidade policial, a exclusão e as dificuldades de uma juventude marcada pela violência e pela pobreza. Obras como “Raio X Brasil” , “Sobrevivendo no Inferno” e “Nada como um Dia Após o Outro Dia” são referências obrigatórias no rap nacional e internacional, sendo o segundo até incluído como leitura em vestibulares.
Foi com esse peso histórico que os Racionais subiram ao palco na última sexta-feira, no Espaço Unimed, em São Paulo. Em uma noite de homenagem à potência negra, o grupo trouxe um show que emocionou o público do início ao fim, com momentos de surpresa e um setlist que revisitou diferentes fases da carreira. Com ingressos esgotados, a apresentação fez parte da quarta edição da Boogie Week, evento que celebra a cultura negra em suas diversas manifestações artísticas.
O espetáculo teve início com a icônica “Diário de um Detento”, uma das faixas mais emblemáticas de “Sobrevivendo no Inferno”. A performance contou com a participação de Dexter, parceiro frequente do grupo e considerado por muitos o “quinto Racional”. A encenação no palco, acompanhada de imagens impactantes no telão, trouxe à tona o peso da narrativa sobre o Massacre do Carandiru, conectando o público à realidade crua que inspirou a música. A sensação era de que os músicos saíam da detenção para compartilhar suas vivências, transportando todos para o universo das letras de Mano Brown.
Em um momento especial da noite, o grupo surpreendeu com a inédita “Malandros Online”, uma colaboração com Rael e Rincon Sapiência que promete ser destaque no próximo álbum dos Racionais, previsto para 2025. A faixa, apresentada como penúltima do show, trouxe uma nova energia ao público e demonstrou o vigor criativo do grupo, que segue relevante e inovador mesmo após décadas de estrada. Encerrando com a explosiva “Vida Loka – Parte 2”, Ice Blue protagonizou o tradicional banho de champanhe, celebrando junto aos fãs mais próximos do palco.
O espetáculo também revisitou o álbum “Nada Como um Dia Após o Outro Dia”, momento em que o grupo trouxe à tona reflexões sobre a conexão entre o rap e as periferias. “Esse disco foi o que mais se conectou com a realidade, ao invés de separar”, já afirmou Mano Brown. A apresentação contou com uma encenação simbólica de liberdade, que emocionou o público ao mostrar personagens deixando a prisão e buscando a paz ao lado da família.
O terceiro ato trouxe canções de “Cores & Valores”, trabalho que Ice Blue definiu como incompreendido pelo público na época de seu lançamento. Com uma estética marcante e referências à comunidade Vila Fundão, o álbum mostrou o flerte do grupo com o trap, antecipando tendências que só se consolidariam anos depois.
Após o show, KL Jay conversou com nossa equipe e compartilhou reflexões sobre a evolução da cena musical e os desafios da atualidade. Ele destacou como a música se transformou com o tempo, tanto em termos de produção quanto de consumo. “As mudanças que vemos hoje são reflexo de outra época, outro momento. Foram criados novos timbres, outras batidas, uma forma diferente de cantar. Tudo mudou, e precisamos acompanhar isso, mas sempre com cuidado para não perder a essência”, afirmou, apontando como a velocidade atual do mercado impacta diretamente a criação e a durabilidade das obras.
O DJ fez questão de pontuar a efemeridade da música nos dias de hoje, comparando-a ao que era produzido nos anos 80 e 90. “As músicas hoje não duram 20 ou 30 anos como antes. Muitas vezes, elas explodem por uma ou duas semanas, arrecadam um monte de streamings, e depois desaparecem. Isso não significa que não existam músicas boas ou artistas talentosos, mas a pressa e a dinâmica atual tornam tudo muito mais descartável. Mesmo as boas acabam sendo esquecidas rapidamente”, lamentou. Ele explicou que o modelo atual de consumo, voltado para hits rápidos, tem mudado a relação entre o público e os artistas.
Ainda assim, KL Jay vê talentos emergindo e acredita que há espaço para trabalhos consistentes. “O que acontece hoje é que, além de pessoas talentosas, você também tem uma galera com olhar empreendedor, que sabe como lucrar com o talento que tem. Isso é importante, mas às vezes tira um pouco do foco artístico. Estamos em uma época em que tudo precisa ser feito de forma muito rápida, e nem sempre isso favorece a criação de algo atemporal”, analisou.
Sobre o papel dos DJs nesse cenário, KL Jay foi enfático ao defender sua importância como curadores da música. “Os DJs têm uma função essencial de continuar tocando músicas boas, de qualquer época. O rap dos anos 90, por exemplo, está sendo cada vez mais valorizado porque as pessoas se conectavam com aquelas letras de verdade. Hoje, às vezes você ouve uma música duas, três vezes e já está pulando para a próxima. Cabe a nós, DJs, manter viva essa memória musical, mesmo com todas as mudanças do mercado”.
Por fim, ele destacou a necessidade de equilíbrio entre velocidade e qualidade. “O mundo está rápido demais, tudo é dinâmico, e é preciso acompanhar. Mas não podemos perder o foco no que realmente importa: a música que toca as pessoas. Ainda existe uma porcentagem de músicas boas que conseguem resistir ao tempo, e é nelas que temos que apostar. Porque música boa, no final das contas, sempre encontra seu espaço”.