O título “A Garota da Agulha” evoca de imediato um universo de dor e transformação. O filme se insere em um contexto pós-Primeira Guerra Mundial, um período em que as estruturas sociais estavam em ruínas e as mulheres, em particular, eram jogadas à própria sorte. Karoline, interpretada com uma vulnerabilidade quase documental por Vic Carmen Sonne, é uma dessas mulheres. Operária de uma fábrica, ela perde o emprego ao engravidar do chefe, um homem que, apesar da posição privilegiada, se recusa a assumir qualquer responsabilidade. Abandonada, sem marido (desaparecido em combate) e sem rede de apoio, ela mergulha na miséria de uma Copenhague que reflete, em sua estética desbotada e nos becos lamacentos, a aridez do futuro que a espera.
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A cinematografia em preto e branco é um dos aspectos mais significativos da obra. Não se trata apenas de uma escolha estilística, mas de uma ferramenta essencial para reforçar o desespero e a desesperança do enredo. O contraste acentuado entre luz e sombra traduz as camadas morais ambíguas da narrativa, realçando tanto o peso da opressão quanto os pequenos respiros de esperança que Karoline encontra ao longo da trama. A câmera, frequentemente estática ou em closes sufocantes, não permite fuga: obriga o espectador a confrontar a degradação e a tragédia que se desenrolam diante de seus olhos.
O encontro com Dagmar, personagem magistralmente interpretada por Trine Dyrholm, marca um ponto de virada na trajetória de Karoline. Dagmar surge como um símbolo da dicotomia entre proteção e exploração. Seu disfarce como dona de uma loja de doces esconde uma atividade clandestina de adoção, uma prática que, na superfície, parece oferecer uma saída para mulheres como Karoline. No entanto, a aura maternal logo dá lugar a uma frieza calculista, uma capacidade de manipular e coagir sem perder a compostura. A ambiguidade moral da personagem é fascinante: Dagmar é, ao mesmo tempo, um produto de sua época e uma predadora que se alimenta da vulnerabilidade alheia.
O design de produção merece destaque absoluto. A recriação da Dinamarca da década de 1910 é meticulosa, transmitindo uma verossimilhança rara. A textura dos figurinos, a decadência dos espaços urbanos e os interiores escuros e claustrofóbicos constroem um ambiente que vai além da ambientação histórica: ele se torna um personagem próprio, um reflexo das circunstâncias que esmagam os protagonistas. O mundo de “A Garota da Agulha” não oferece respiros, não abre brechas para sentimentalismos fáceis. Tudo é pautado por um realismo brutal que reforça a tragédia silenciosa das mulheres da época.
O filme levanta questões atemporais sobre maternidade e abandono. O dilema central (o que significa dar à luz em um mundo que não acolhe mães solteiras?) ressoa com força mesmo fora do contexto histórico específico. A forma como os bebês são representados na trama é especialmente significativa: longe de serem apenas símbolos de pureza, são fardos, pesos que podem definir a ruína de uma mulher. O contraste entre a nossa perspectiva moderna e a realidade brutal da época torna a experiência ainda mais inquietante.
Cada cena aprofunda a espiral de desesperança que envolve Karoline. A narrativa progride com um ritmo implacável, eliminando qualquer expectativa de redenção. A cada novo momento, o filme reitera a ausência de escapatória, o caráter inexorável de um destino cruel. É um relato de sobrevivência que não busca glorificar sua protagonista, mas sim evidenciar a precariedade absoluta da existência em tempos de guerra e opressão. “A Garota da Agulha” não apenas denuncia a brutalidade do passado, mas convida à reflexão sobre os ciclos de marginalização que, de formas diferentes, persistem até hoje. Um filme denso, perturbador e necessário, que permanece na mente muito depois dos créditos finais.