Existe uma certa coragem quando alguém como Bono decide se despir da própria lenda e transformar sua história em espetáculo. Em “Bono: Histórias de Surrender”, o palco vira espelho e o rockstar se apresenta entre memórias, culpas e afagos de um tempo que insiste em se desdobrar em voz alta. A ambição do projeto é evidente, mas o que surpreende não é a pompa, e sim a tentativa sincera de escavar humanidade entre as dobras da própria mitologia. Essa não é uma performance sobre uma estrela, é um ensaio sobre a vulnerabilidade de quem carregou o peso de ser mais que um artista e nem sempre soube como.
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A narrativa alterna entre o grandioso e o íntimo, sempre com o filtro de alguém acostumado aos holofotes. Há um senso performativo que nunca se esconde, e nem deveria: Bono nunca foi sutil em sua forma de comunicar. O documentário opera como uma encenação controlada da memória, onde tudo é cuidadosamente coreografado para soar honesto mesmo que a encenação em si nunca desapareça. Isso não reduz seu impacto. O resultado é uma espécie de oratório moderno, onde o ego e a confissão convivem lado a lado, sem medo de se chocarem. O ritmo é deliberadamente contemplativo, e o uso do preto e branco carrega o tom de reverência que o próprio artista parece exigir.
Existe uma busca constante por equilíbrio entre o homem e o símbolo. O filme tenta dar conta de ambos, ainda que não consiga escapar da teatralidade que sempre cercou Bono. Essa é uma obra que se ergue a partir do exagero, e é nesse exagero que ela encontra seus momentos mais interessantes. Há cenas que escorregam no excesso metáforas visuais que gritam mais do que explicam, interlúdios que se querem confessionais mas soam orquestrados demais. Ainda assim, mesmo quando flerta com a autoparódia, o documentário preserva algo raro: a tentativa autêntica de refletir sobre o próprio legado, sem a pretensão de encerrá-lo.
O que se destaca é a estrutura: ao abrir espaço para o silêncio, para o riso contido, para a contradição, a obra revela um artista que ainda está em construção, mesmo depois de décadas como referência. A trilha ao fundo, sempre presente, pontua o discurso como uma lembrança de que ali está alguém que aprendeu a traduzir o mundo através de acordes, mas hoje escolhe fazê-lo com palavras. O texto é lapidado, quase literário, e a encenação reflete isso. A linguagem visual conversa com a dramaturgia de alguém que entende o impacto de cada gesto. Pode soar excessivo para quem busca espontaneidade, mas o objetivo aqui é outro: criar uma cápsula de tempo em que Bono se permite existir além das manchetes.
Não é um filme-concerto, nem um diário filmado. É algo entre os dois. Um exercício de presença, conduzido por um artista que conhece cada câmera, cada luz, cada pausa dramática. Não há concessão à simplicidade, e talvez esse seja o ponto mais honesto de todos. Bono sempre foi um operista do pop, e isso se traduz em cada escolha estética. A entrega não é do tipo silenciosa, mas ela existe. Existe quando o discurso cede espaço à emoção, quando a máscara de ícone cultural revela a fragilidade de um filho, de um pai, de um homem.
“Bono: Histórias de Surrender” é uma experiência sobre forma, sobre controle e sobre o peso de uma biografia vivida sob os olhos do mundo. Não é para todos, e não precisa ser. É uma proposta que se assume grandiosa e que abraça a própria complexidade como linguagem. Para quem acompanha o artista há anos, pode soar como um acerto de contas necessário. Para quem não acompanha, talvez seja apenas mais um espetáculo sobre alguém famoso. Mas para quem busca cinema como ritual de entrega, existe ali uma potência genuína que justifica cada detalhe coreografado.
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