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Crítica: “Delírio” (1ª temporada)

“Delírio” não é uma série que pede permissão para entrar. Ela invade, com imagens sensoriais e desequilíbrio emocional, o espaço onde a razão deveria habitar. E ali, entre memórias partidas e ruídos de um passado nunca curado, revela-se uma narrativa sobre o peso insustentável da herança psíquica e da repressão emocional. Inspirada no livro homônimo de Laura Restrepo, a adaptação da Netflix costura o delírio literal ao simbólico com uma condução que alterna lucidez poética e colapso narrativo, mantendo o espectador sempre um passo atrás dos personagens. E é exatamente aí que ela encontra sua força.

Crítica: “Delírio” (1ª temporada)

Agustina Londoño, interpretada por Estefania Piñeres, é o epicentro de uma história que não gira ao seu redor, mas se esfarela com ela. O que começa como um reencontro amoroso entre uma jovem de passado turbulento e um professor universitário engajado se transforma em um labirinto psíquico, onde o tempo não é confiável, os afetos são instáveis e a verdade parece um espelho estilhaçado. Quando Aguilar (Juan Pablo Raba) retorna de viagem e encontra sua esposa em estado de colapso, a narrativa abandona a linha reta para seguir um rastro quebrado de memórias e traumas. A partir daí, tudo é investigação. Mas não sobre um crime. Sobre o que resta de alguém quando a mente começa a se desconectar da realidade.

A série constrói esse colapso com uma elegância formal desconcertante. O uso de flashbacks fragmentados, as sobreposições de tempos e a paleta opaca carregada de tons úmidos criam uma atmosfera que é tanto histórica quanto subjetiva. Estamos nos anos 1980, mas também estamos dentro da mente de Agustina. E nesse espaço íntimo, o tempo não obedece cronologias. O que importa não é o que aconteceu, mas o que isso deixou.

A direção de Julio Jorquera e Rafael Martínez Moreno opta por não entregar tudo de imediato. A montagem é tensa, os cortes sugerem mais do que mostram, e há sempre uma sensação de que estamos vendo a realidade com a mesma imprecisão da protagonista. As imagens se repetem, os rostos mudam de tom conforme o delírio avança, e o espectador é jogado num jogo de percepção que exige atenção plena. Há momentos em que a série flerta com o pesadelo surreal, como nos trechos envolvendo a infância de Agustina, sua mãe colecionadora de insetos e os avisos sobre o corpo feminino como receptáculo da loucura. Esses fragmentos de horror doméstico não são apenas desconfortáveis. São decisivos para entender que a loucura, aqui, é menos um colapso e mais um acúmulo.

Estefania Piñeres entrega uma performance magnética, onde fragilidade e ferocidade se alternam sem aviso. Sua Agustina não é vítima nem vilã, mas um corpo em constante combustão emocional. Ela expõe o descompasso entre o que sente e o que consegue comunicar, transformando cada cena em território de tensão emocional crua. Já Juan Pablo Raba, como Aguilar, funciona mais como o fio narrativo que tenta costurar os pedaços partidos da trama. Ele é menos protagonista e mais testemunha do que é amar alguém cuja mente já não encontra chão.

“Delírio” também se destaca ao abordar o peso da classe, da hipocrisia social e das dinâmicas de poder familiar na alta sociedade de Bogotá. O personagem de Fredy, o “El Midas”, é central nesse eixo. A relação dele com Agustina, marcada por intensidade emocional, revela como o afeto também pode ser contaminado por estruturas de desigualdade e culpa. E tudo isso aparece sem panfletarismo, apenas como mais uma rachadura no edifício emocional da protagonista.

Ainda que a série nem sempre consiga sustentar o ritmo no segundo ato e que certos arcos colaterais soem subdesenvolvidos, “Delírio” acerta ao priorizar a imersão emocional à linearidade narrativa. Ela entende que o delírio não é uma exceção, mas uma resposta legítima a uma vida insuportável. E nesse sentido, a série não explica. Ela mostra. Não entrega soluções. Expõe a ferida.

No fim, “Delírio” não é sobre um mistério a ser desvendado, mas sobre a experiência de perder alguém ainda presente, de amar o que já se ausentou em silêncio, de lidar com a sombra que as famílias escondem em nome do nome, do prestígio e da normalidade. E é por isso que ela permanece, mesmo depois do último episódio, como um zumbido incômodo na memória.

“Delírio”
Direção: Julio Jorquera e Rafael Martínez Moreno
Elenco: Juan Pablo Raba, Estefania Piñeres, Jacobo Diez
Disponível na Netflix

Avaliação: 3.5 de 5.

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