Difícil imaginar um filme que combine cartel mexicano, questões queer e sequências musicais sem soar caótico, certo? Mas Jacques Audiard consegue fazer exatamente isso no aclamado longa “Emília Perez“, criando uma narrativa tão rica quanto ousada. Cada frame, cada música e, principalmente, as atuações de Zoe Saldaña e Karla Sofía Gascón, são envolvidos por uma ousadia que desafia expectativas e marca o espectador de forma profunda. É uma obra que, sem dúvida, vai permanecer na memória por muito tempo.
Logo de início, é impossível não se deixar envolver pelo ritmo fluido do filme. Audiard consegue conduzir a história sem pressa, mas sem perder o fôlego, alternando momentos de ação e reflexão com maestria. O que poderia facilmente se tornar uma experiência fragmentada, dadas as transições entre cenas de cartel e momentos musicais resultando em um fluxo contínuo de imagens e sons que, mesmo nos momentos mais surreais, mantém a conexão com o espectador.
Rita (Zoe Saldaña) é uma advogada cuja vida se encontra num impasse ético. Ela, uma profissional brilhante, acaba presa a uma empresa cuja função é proteger criminosos. Esse dilema moral é intensificado quando Juan Del Monte (vivido por Karla Sofía Gascón) – chefe de um dos cartéis mais perigosos, decide abandonar sua vida de crimes. A trama, que poderia facilmente cair em clichês de filmes de crime, se reinventa com a entrada das questões queer e dos números musicais, que em um primeiro momento parecem destoar do tema sombrio, mas logo se mostram essenciais para a narrativa.
Os números musicais, apesar de interromperem a fluidez natural da trama em alguns momentos, são cuidadosamente inseridos, criando uma sensação de pausa que, ao invés de dispersar, convida à introspecção. E se algumas canções não funcionam tão bem para todos, outras são absolutamente marcantes, como o impactante coro infantil. Essa mistura de gêneros é um dos grandes méritos do filme, que consegue abordar temas como corrupção, violência de gênero e a luta pelos direitos das minorias sem perder seu tom poético e intimista.
O trabalho de Jacques Audiard na direção é, como de costume, meticuloso. O filme é visualmente estonteante, com planos que merecem ser estudados de tão bem orquestrados. Desde as tomadas de close nas pernas no início até o quadro das metralhadoras no final, tudo é filmado com uma precisão impressionante. As cores, a iluminação e os movimentos de câmera são coreografados com a mesma maestria dos números musicais, criando uma experiência visual que é, no mínimo, hipnotizante.
Zoe Saldaña entrega uma performance poderosa, mostrando uma versatilidade que muitos espectadores talvez não esperassem, especialmente aqueles acostumados a vê-la em papéis de blockbuster. No entanto, é Karla Sofía Gascón quem realmente rouba a cena. Interpretando dois personagens de gêneros diferentes, Gascón traz uma intensidade e uma profundidade à tela que a colocam como forte candidata ao Oscar. Sua presença magnética dá vida a Juan Del Monte de forma que poucas atrizes conseguiriam.
Há também o lado político de “Emília Perez“, que não pode ser ignorado. Em meio às cenas vibrantes e ao drama pessoal dos personagens, o filme aborda questões complexas como a opressão do cartel, a corrupção governamental e o desaparecimento de pessoas. Mas Audiard faz isso sem nunca pregar ou ser didático. Ele confia na inteligência do espectador para conectar os pontos e entender as camadas de subtexto presentes em sua obra.
Embora alguns possam achar que o filme se estende um pouco mais do que o necessário em seus momentos finais, é inegável que “Emília Perez” entrega uma experiência cinematográfica única. É raro ver um filme que combina de forma tão orgânica elementos aparentemente díspares – musical, drama, thriller e crítica social – e ainda assim consegue manter sua coesão.
Se “Emília Perez” não é para todos, é porque não se propõe a ser. Audiard criou algo audacioso, algo que desafia as convenções de gênero e de narrativa, e talvez por isso seja tão fascinante. Filmes como este, que ousam trilhar caminhos desconhecidos, são os que, no final das contas, permanecem na memória.
O filme faz parte da programação do Festival do Rio. Para mais informações, basta clicar aqui.