Em “Hedda”, Nia DaCosta revisita o clássico de Henrik Ibsen com uma ousadia que transforma o teatro em um campo de batalha emocional. A diretora se afasta da reverência literária e cria uma versão febril e hipnótica, onde cada gesto da protagonista parece desafiar o próprio conceito de submissão feminina. O resultado é um filme que pulsa entre o desejo e a destruição, entre a liberdade e o cárcere.

Ambientado na Inglaterra dos anos 1950, “Hedda” se constrói como um espelho distorcido da alta sociedade. O luxo e a rigidez moral coexistem com as sombras da repressão e da insatisfação. Nia DaCosta, que já havia mostrado habilidade para lidar com diferentes gêneros em “Little Woods”, “Candyman” e “The Marvels”, demonstra aqui um domínio impressionante da intimidade. Ela filma o confinamento como se fosse uma dança, transformando o espaço doméstico em um labirinto psicológico onde nada é o que parece.
Hedda, interpretada por Tessa Thompson, é um vulcão em erupção lenta. Seu olhar contém a promessa do caos e sua voz parece medir cada palavra como se controlasse o próprio tempo. Quando a encontramos, ela está sendo interrogada sobre um crime que aconteceu em sua casa. O cigarro entre os dedos, o humor cortante e o ar de superioridade revelam uma mulher que domina o jogo da aparência, mesmo quando tudo ao redor ameaça desabar. Hedda é a personificação da contradição: deseja ser livre, mas manipula; busca amor, mas destrói o que toca.
O roteiro de DaCosta atualiza o texto de Ibsen sem perder sua densidade filosófica. A diretora transforma o diálogo do século XIX em um discurso sobre identidade, poder e raça. Em uma Inglaterra pós-guerra que ainda tenta definir seus próprios limites morais, ver uma mulher negra ocupar o centro desse universo branco e patriarcal é, por si só, uma revolução silenciosa. “Hedda” é também sobre o olhar: quem pode ser visto, quem é permitido desejar e quem paga o preço por isso.
Tessa Thompson entrega uma atuação magnética, misturando fragilidade e arrogância com uma precisão quase cruel. Há algo de perigoso em sua serenidade, uma força que parece sempre prestes a explodir. Nina Hoss e Nicholas Pinnock completam o elenco com interpretações que orbitam em torno da protagonista, como planetas atraídos por um sol prestes a colapsar.
DaCosta não se contenta em reproduzir o teatro filmado. Ela transforma a encenação em cinema puro. A fotografia alterna tons dourados e azuis, como se o filme respirasse entre o calor da emoção e o gelo do controle. A câmera desliza pelos corredores da casa como um fantasma, registrando os sussurros e os silêncios que definem o destino de cada personagem. Há momentos em que a tensão é quase física, e o espectador se vê preso à mesma armadilha de Hedda: o desejo de escapar e o medo do que existe fora da moldura.
Em entrevistas, Nia DaCosta explicou que sua intenção era retratar mulheres negras em sua complexidade total, inclusive quando são vistas como “difíceis”, “imperfeitas” ou “não exemplares”. Essa escolha dá ao filme uma camada política e emocional poderosa. “Hedda” é sobre o direito de ser contraditória, errada, excessiva e ainda assim humana.
Ao final, quando o silêncio toma conta da tela, o espectador entende que a tragédia não está na morte, mas na impossibilidade de viver plenamente sob as regras impostas pelos outros. DaCosta entrega um filme que combina rigor estético, potência simbólica e um olhar afiado sobre a condição feminina. “Hedda” não busca piedade nem absolvição. Ela quer apenas ser lembrada.
“Hedda”
Direção: Nia DaCosta
Roteiro: Nia DaCosta
Elenco: Tessa Thompson, Nina Hoss, Nicholas Pinnock
Disponível em: Prime Video
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