Em “Maré Alta”, Marco Calvani constrói um drama que transcende a narrativa convencional sobre imigração e pertencimento, apostando em uma abordagem meticulosa e profundamente observacional. O filme acompanha Lourenço (Marco Pigossi), um imigrante brasileiro que busca refúgio e novas oportunidades nos Estados Unidos, mais precisamente em Provincetown, um dos destinos historicamente mais simbólicos para a comunidade LGBTQIAPN+. Contudo, o que à primeira vista parece um espaço de acolhimento e liberdade logo se revela um território marcado por dinâmicas de exclusão, desigualdade e racismo estrutural.
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O roteiro, escrito pelo próprio Calvani, evita a armadilha da superexposição emocional, apostando na força das entrelinhas e na atuação minimalista de Pigossi. Lourenço é um personagem construído com camadas: sua solidão não é expressa por monólogos expositivos ou gestos exagerados, mas por nuances no olhar, silêncios e a forma como ele reage às microagressões diárias. O espectador percebe sua frustração e desesperança através da mise-en-scène, que o posiciona constantemente à margem dos ambientes em que circula, seja limpando pensões para turistas, seja interagindo com os locais que oscilam entre a hospitalidade e o preconceito velado.
A chegada de Maurice (James Bland), um enfermeiro nova-iorquino que visita Provincetown de férias, insere um novo elemento na trajetória de Lourenço. A relação entre os dois é um ponto central da narrativa, mas não se desenrola sob a lógica tradicional do romance cinematográfico. O filme evita a tentação de transformar Maurice em um redentor para o protagonista; ao contrário, ele próprio enfrenta suas questões dentro de um universo gay onde o racismo ainda é uma força operante. A química entre os atores é construída com sutileza, e as cenas de intimidade são cuidadosas ao refletir a complexidade desse encontro: mais do que uma simples paixão de verão, é um choque de realidades e expectativas.
Visualmente, Calvani utiliza Provincetown como um personagem vivo, alternando entre a idealização turística e a crueza de seus bastidores. A fotografia explora a luz natural e os tons pastéis para reforçar a sensação de uma cidade idílica, enquanto a câmera se mantém próxima aos personagens, quase documental, para capturar a dureza da vida cotidiana. Essa dualidade é essencial para compreender o arco de Lourenço, que começa deslumbrado pelo ambiente e termina confrontado com suas limitações.
O elenco secundário adiciona camadas ao drama, com destaque para Bill Irwin no papel de Scott, um idoso gay solitário que oferece abrigo ao protagonista, e Marisa Tomei, que interpreta uma artista local cuja função na trama está menos ligada ao apoio e mais à exposição das contradições sociais da cidade. Já Bryan Batt, interpretando um advogado mais velho que se interessa por Lourenço, encarna a face do desejo fetichizado e do racismo internalizado dentro da comunidade gay.
Calvani demonstra domínio narrativo ao estruturar “Maré Alta” como um estudo de personagem em vez de uma trama convencional. O roteiro é econômico, evitando explicações desnecessárias e apostando na ambientação e nas relações interpessoais como motor dramático. A montagem privilegia a fluidez dos eventos sem recorrer a elipses bruscas, permitindo que as emoções dos personagens amadureçam organicamente. O uso do som diegético reforça a imersão, destacando o contraste entre o silêncio introspectivo de Lourenço e o ruído constante das festas e encontros casuais ao seu redor.
O desfecho do filme, surpreendente e profundamente melancólico, sintetiza a essência da narrativa sem apelar para sentimentalismos baratos. “Maré Alta” não oferece respostas fáceis nem um encerramento redentor, mas um retrato sincero da precariedade emocional e estrutural vivida por tantos imigrantes e indivíduos marginalizados dentro de comunidades que, à primeira vista, parecem acolhedoras. É um longa que desafia as convenções do cinema queer contemporâneo, recusando a superficialidade das representações idealizadas e optando por uma abordagem que combina precisão técnica com uma sensibilidade rara. Com isso, Marco Calvani estabelece-se como um cineasta de olhar aguçado, capaz de transformar um microcosmo em um reflexo universal das tensões entre pertencimento e exclusão.
Na première de “Maré Alta” em São Paulo, Marco Pigossi e Marco Calvani compartilharam suas impressões sobre o filme e a importância da história que ele carrega.
Para Pigossi, o longa mergulha na solidão do imigrante, um tema que o tocou profundamente. “O filme fala muito sobre essa solidão“, destacou. Ele ressaltou como a narrativa explora a experiência de quem muda para um país desconhecido, sem apoio, sem rede de contatos e longe da família. “É uma coisa muito específica da imigração“, afirmou. Mas não se trata apenas do isolamento, e sim da forma como laços são construídos. “Fala dessa rede de apoio, desse encontro de amigos, do que é ser uma comunidade“, pontuou, acrescentando que a essência do filme é o pertencimento: à comunidade, à cidade, ao país e, acima de tudo, a si mesmo.
Já para Marco Calvani, o projeto é profundamente pessoal. “Não é uma história biográfica, mas tem tantas coisas que me pertencem“, revelou. Desde a concepção do roteiro até a produção e exibição, ele viu o filme se tornar cada vez mais relevante. “Estar no mundo com um filme assim, que fala sobre imigração, sobre valores LGBTQIAPN+ sobre amor, é algo muito importante para mim“, destacou. Para ele, a mensagem de conexão e afeto nunca foi tão necessária. “Agora devemos espalhar essa mensagem de amor ainda mais e ainda mais alto do que nunca“, defendeu. O envolvimento de seu marido no projeto tornou a experiência ainda mais especial. “Isso adicionou outra camada de amor ao longo da experiência“, concluiu, emocionado com a recepção do filme.
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