“O Eternauta” emerge como um marco incontornável da ficção científica latino-americana ao conseguir transpor, com impressionante competência técnica e refinamento narrativo, a atmosfera claustrofóbica e politicamente carregada da icônica graphic novel de Héctor G. Oesterheld e Francisco Solano López. A série, desenvolvida com o apoio da Netflix, faz justiça ao seu material de origem sem se limitar a ele, estabelecendo uma linguagem audiovisual própria, sofisticada e plenamente inserida nos padrões mais elevados da produção internacional.
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A premissa, ancorada na catástrofe climática de uma nevasca tóxica que inaugura uma invasão alienígena sistemática, rapidamente desloca o foco de uma ação especulativa para um drama de resistência civil e existencial. A Buenos Aires sitiada, onde a cidade e o corpo tornam-se territórios simultaneamente geográficos e simbólicos de ocupação, é registrada com um rigor estético de alto impacto, tanto em composição de planos quanto em direção de arte. A escolha de tratar o branco da neve como elemento fóbico, visualmente contaminante, transforma o sublime em ameaçador. O ambiente urbano é redesenhado como espaço de terror silencioso, onde o tempo narrativo se dilata junto com o desespero.
O grande acerto da direção está na forma como manipula os regimes de visibilidade: a ameaça quase nunca se revela completamente, operando no campo da sugestão, do implícito, do não dito. Isso potencializa o terror psicológico e reconfigura os códigos do gênero para um espectador já saturado por espetáculos de CGI. O gesto de recusar o sensacionalismo gráfico, apostando em tensão progressiva e colapso emocional, indica uma maturidade estética que alinha “O Eternauta” mais com o cinema de Tarkovsky do que com os produtos usuais da ficção apocalíptica hollywoodiana.
Ricardo Darín entrega uma performance densa, quase sempre contida, profundamente afinada com a proposta de um protagonista que carrega o peso da liderança em meio ao desmoronamento coletivo. Seu Juan Salvo é mais do que um arquétipo de herói relutante: ele é um homem atravessado por dilemas éticos, responsabilizado por vidas que nem sabe se conseguirá preservar, forçado a encontrar sentido na solidariedade enquanto o mundo desaba ao seu redor. A direção de atores valoriza o subtexto e investe em pausas, olhares, reações – elementos de construção dramática que raramente encontram espaço em narrativas de alto orçamento.
A estrutura narrativa da série aposta em uma progressão modulada. Os dois primeiros episódios são deliberadamente contemplativos, quase ensimesmados em sua densidade atmosférica. No entanto, essa opção revela-se estratégica, pois estabelece um regime de linguagem e uma cadência emocional que será recompensada nos episódios seguintes. A partir do terceiro capítulo, a narrativa alcança um ponto de inflexão e adota um ritmo de tensão controlada, intensificando o entrelaçamento entre ação e reflexão. O roteiro acerta ao articular múltiplos níveis de conflito: o físico, o psicológico, o político e o filosófico. A ameaça alienígena opera como metáfora aberta, receptiva a múltiplas leituras — do totalitarismo ao colapso ambiental, da vigilância à necropolítica contemporânea.
Tecnicamente, “O Eternauta” é irretocável. A fotografia combina o uso dramático de sombras e neblina com uma paleta gélida que reconfigura Buenos Aires em um espaço de desolação quase mitológica. A trilha sonora evita os excessos sinfônicos habituais e opta por uma sonoridade orgânica, incômoda, dissonante, a música parece vibrar junto ao colapso das estruturas sociais. A montagem é precisa, tanto na dosagem das cenas de ação quanto na articulação entre os diversos núcleos narrativos. A construção dos personagens é gradual, mas profundamente eficaz: cada figura evolui emocionalmente à medida que o cerco se fecha, e a série não hesita em expor contradições, ambiguidades e limites éticos nas escolhas de seus protagonistas.
No contexto da indústria audiovisual latino-americana, “O Eternauta” representa um avanço inédito em termos de ambição estética, escala de produção e maturidade política. Não se trata de um produto derivativo, nem tampouco de uma adaptação reverente. É uma obra que compreende o espírito da fonte e o expande com autonomia criativa, respeitando as singularidades regionais enquanto opera com as ferramentas de uma indústria globalizada.
“O Eternauta” é um estudo sobre a condição humana frente ao fim, uma meditação sobre memória coletiva, resistência e fragilidade. Em um cenário saturado de distopias genéricas, sua aposta na emoção contida, na complexidade política e na integridade formal o posiciona como uma das produções mais relevantes da ficção científica televisiva da década. Se o século XXI exige novas formas de imaginar o colapso, esta série oferece uma resposta brutal, poética e profundamente necessária.
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