Poucos filmes recentes abordam o tema do desaparecimento com tamanha brutalidade emocional e rigor estético quanto “Sirat”. Dirigido com ousadia e precisão, o longa apresenta uma estrutura inicialmente simples: um pai que, junto ao filho, atravessa o deserto do Norte da África em busca da filha desaparecida e a transforma em uma experiência cinematográfica densa, desorientadora e existencial. Com ecos de road movie, drama familiar e thriller de sobrevivência, a obra se impõe menos por sua narrativa do que pelo que ela escava em seus personagens, e pelo modo como o próprio percurso físico se contamina de significados simbólicos.
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O título, extraído da ponte estreita que, segundo o Alcorão, separa o mundo dos vivos do Paraíso, já antecipa o estado liminar em que o filme opera. “Sirat” é, antes de tudo, uma travessia em que cada passo carrega o risco de ruína. Essa travessia é marcada por uma composição visual milimétrica, que transforma a aridez do deserto marroquino em palco de tensão permanente. A fotografia evita o exotismo e recusa qualquer encantamento paisagístico. Ao contrário, ela insinua o peso do trajeto, sua densidade psicológica, seu desgaste físico e simbólico.
Sergi López entrega, aqui, a performance mais visceral de sua carreira. Seu personagem, moldado pela culpa, pelo amor e por um instinto de sobrevivência quase animalesco, se transforma aos poucos em figura trágica. A atuação não busca empatia fácil, mas trabalha no limite da contenção e do desespero, compondo um homem dilacerado que se recusa a colapsar. A jornada do pai é observada com precisão cirúrgica pelo diretor, que recusa sentimentalismos e opta por uma abordagem fria, quase documental, sem jamais abdicar de uma intensidade emocional brutal.
Narrativamente, “Sirat” evita arcos clássicos. A linearidade é apenas aparente. O filme opera por dilatação de momentos, com sequências prolongadas que acumulam tensão, intercaladas por explosões de caos. A famosa cena do campo minado sintetiza com perfeição essa estratégia: silêncio absoluto, tempo estendido até o insuportável, um passo em falso como metáfora da vida em estado de crise. Não se trata apenas de suspense. É sobre o colapso iminente de uma ordem emocional.
A trilha sonora eletrônica é um contraponto surpreendente, que expande o universo sonoro do filme sem quebrar sua coerência estética. Esses momentos de dança em meio ao deserto, quase alucinatórios, não são apenas estilização gratuita, mas funcionam como rituais de suspensão da dor e breves lampejos de vitalidade em um mundo corroído pela ausência. Em sua fusão de tradição islâmica, cultura e desintegração familiar, “Sirat” constrói um espaço onde o sagrado e o profano colidem sem aviso.
Formalmente, o filme flerta com os delírios visuais de Pacifiction e com a sensualidade crua de Mektoub, My Love, mas o faz sob um prisma mais austero e simbólico. A mise-en-scène é meticulosamente calculada para criar desconforto: a câmera nunca permite que o espectador se acomode. Há um trabalho rigoroso de enquadramento e som direto que impõe uma sensação constante de instabilidade. A montagem, muitas vezes dissonante, fragmenta a experiência para que nunca se consolide uma linearidade emocional.
“Sirat” não é um filme que se assiste em busca de respostas. Ele é, essencialmente, um filme de perguntas, sobre paternidade, sobre masculinidade em ruínas, sobre pertencimento em territórios hostis, e sobre o que resta quando a linguagem da razão já não sustenta os vínculos humanos. Ao expor seus personagens ao limite físico e psíquico, o filme propõe uma meditação feroz sobre os labirintos morais que emergem quando a estrutura familiar colapsa e quando o instinto substitui a civilidade.
No fim, o que permanece é uma sensação cortante de deslocamento. “Sirat” é uma jornada sem promessas, sem redenção, sem moral universalizável. É, no sentido mais profundo, um retrato sobre a incerteza sobre esse caminho estreito, instável e indefinido que insistimos em atravessar mesmo sem saber se do outro lado existe algo além do silêncio. É um cinema que não busca consolar, mas confrontar. E esse confronto, mesmo brutal, é absolutamente necessário.
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