“Pecadores” começa como um conto de vampiros ambientado no Mississippi dos anos 1930, mas à medida que a narrativa se desenrola, o que emerge é uma reflexão poderosa sobre racismo estrutural, ancestralidade negra e o poder da arte como mecanismo de resistência. Ryan Coogler cria aqui uma obra que, embora tenha elementos sobrenaturais, nunca se desconecta do terror real e cotidiano que moldou a experiência afro-americana nos Estados Unidos do início do século XX.
Atenção: este texto contém spoilers do filme “Pecadores”. Caso prefira uma crítica livre de spoilers, basta clicar aqui.

O desfecho de “Pecadores” aprofunda essas tensões de forma simbólica e estrutural. Após a morte de Remmick, o vampiro que inicialmente surge como o antagonista central, a narrativa muda de direção. A figura do verdadeiro mal se revela não como uma criatura mítica, mas como uma milícia supremacista branca, ligada à Ku Klux Klan, que retorna para destruir aquilo que não consegue controlar: a liberdade artística e espiritual de uma comunidade negra.
A decisão de Smoke de enfrentar Hogwood e os demais membros da milícia não é apenas estratégica. Trata-se de um gesto carregado de significado. Mesmo sabendo dos riscos, Smoke opta por proteger aquele espaço cultural que construiu com Stack. Seu gesto final (remover o amuleto de proteção feito por Annie, sua falecida companheira) é uma entrega consciente. A morte que se segue não é trágica no sentido convencional: é um sacrifício. Ao final, quando vê os espíritos de Annie e da filha, o filme sugere que Smoke alcança uma forma de redenção e de paz.
Enquanto isso, Sammie, o jovem músico em conflito com sua vocação, se vê em meio a perdas, luto e revelações espirituais. A música, inicialmente tratada como fonte de instabilidade, se mostra como a verdadeira arma contra o esquecimento. Ele sobrevive ao ataque, mas não é a sobrevivência física que importa. É a continuidade de um legado. Nos anos seguintes, Sammie se torna uma figura influente no blues, mantendo viva a memória e os ensinamentos que herdou de sua comunidade. A música, para ele, é mais do que arte: é um canal de comunicação entre mundos.
A cena pós-créditos revela um futuro curioso: Stack e Mary, agora vampiros, vivem clandestinamente nos anos 1990. Esse salto temporal sublinha uma ideia presente em todo o filme: o vampirismo como metáfora de sobrevivência em ambientes hostis, mas também como risco de desassociação. Se antes eram parte ativa de uma cultura enraizada, agora vagam à margem, adaptados a um tempo que talvez não os compreenda. O sorriso com que revelam seus dentes é ao mesmo tempo símbolo de liberdade e de exílio.
O filme, no entanto, nunca entrega respostas fáceis. A conversão de Bert e Joan em vampiros serve como alerta. Ambos são transformados por Remmick, e através deles o roteiro expõe como o ódio é uma construção que pode ser desfeita, ainda que sob circunstâncias extremas. A transformação é literal e simbólica: ao perderem sua humanidade como supremacistas, ganham uma nova chance como criaturas que precisam se reconfigurar dentro de outra lógica existencial.
Esse debate sobre pertencimento e assimilação é sofisticado. Stack e Mary, por exemplo, acabam preservando a vida eterna, mas desconectados de suas raízes. Já Smoke morre, mas mantém intacta a integridade de sua comunidade e de sua memória. O filme não escolhe um final feliz, mas propõe que há vitórias que não cabem na lógica da sobrevivência física. A arte, nesse contexto, é o que resta e o que resiste.
Todo esse simbolismo se ancora na música, que tem papel central. Coogler e o compositor Ludwig Göransson mergulharam na história do blues, percorrendo o “Caminho do Blues” no Mississippi e visitando a cidade natal de B.B. King. Essa vivência se materializa nas cenas iniciais com músicos de rua, nos rituais espirituais conduzidos por Annie e nos shows do juke joint um espaço onde arte, religiosidade e resistência se encontram.
As referências ao hoodoo, à lenda de Robert Johnson e à espiritualidade afro-americana ampliam o sentido do enredo. Quando o jovem Sammy, ainda criança, escuta sobre músicos que “fizeram pacto com o diabo” para alcançar talento, o que está em jogo não é um mito religioso, mas a forma como a sociedade lida com talentos que não consegue explicar, especialmente quando vêm de corpos negros. A encruzilhada, tão presente no imaginário espiritual do hoodoo, é também uma metáfora para as escolhas que os personagens fazem entre assimilação e ancestralidade.
“Pecadores” é, no fim, uma celebração complexa da identidade negra, envolta em dor, espiritualidade e reinvenção. Coogler entrega uma obra onde cada personagem, cada decisão, cada acorde de blues carrega séculos de história. E é por isso que, mesmo mergulhado em alegorias fantásticas, o filme nunca perde o chão. Pelo contrário: é justamente por meio do fantástico que ele encontra formas de dizer verdades muito concretas.
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