“Oh, Canadá” é o tipo de filme que parece existir num limiar incômodo entre o testamento e a autópsia. Um mergulho brutal nas zonas mortas da memória, onde a verdade já não pode ser tratada como algo puro, nem as imagens como espelhos confiáveis. Paul Schrader escancara seu cinema mais despojado e dolorosamente íntimo em um exercício de confissão pública que dilacera a figura do artista como mito e o expõe como ruína.
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Ao colocar um documentarista à beira da morte diante das câmeras para contar sua própria história, Schrader abandona a narrativa tradicional em favor de um fluxo fragmentado, instável, dissonante. A montagem se desarticula como se o próprio tempo estivesse falhando. As imagens deslizam entre o real e o inventado, entre o documentário e a ilusão, como se até a linguagem do cinema estivesse em colapso diante da vergonha que sustenta essa vida.
O que está em jogo aqui não é só um homem, mas a própria ideia de memória como evidência confiável. Schrader extrai do texto de Russell Banks um confessionário que jamais oferece a paz da absolvição, mas a brutalidade de uma vida construída sob mentiras úteis. O protagonismo de Richard Gere, já esvaziado da vaidade que o consagrou, reforça esse gesto de exposição: corpo, voz e olhar envelhecidos são parte da narrativa, não apenas da encenação.
A estética é um campo de batalha. Há mudanças abruptas na razão de aspecto, transições radicais entre o preto e branco e o colorido saturado, uma mise-en-scène que flerta com o teatro filmado e depois com a linguagem documental, para logo se dissolver num delírio emocional que falsifica o real. Schrader não está interessado em nos guiar. Está interessado em nos deixar perdidos dentro da psique de um homem que passou a vida inteira performando integridade, enquanto escapava do confronto com sua própria covardia.
A câmera foca no rosto. Longos takes. Lentes fechadas. O close não é mais apenas recurso expressivo: ele é um interrogatório. A cada resposta, uma camada se desfaz. E o que sobra ao final não é um herói desconstruído, mas um artista tomado pelo pânico de ter sido uma farsa. O cinema, nesse ponto, deixa de ser catarse e se torna campo de exumação.
“Oh, Canadá” trata da tentativa desesperada de ressignificar a própria vida quando já não há tempo para consertá-la. É uma obra sobre legado, sobre identidade, sobre o peso insuportável da memória e a fragilidade do homem por trás das obras. Um filme que desafia a lógica da redenção fácil, desconstrói a linearidade do tempo e recusa qualquer forma de complacência com seus personagens.
O Canadá, apesar de onipresente nas falas e no passado do protagonista, nunca se materializa visualmente. E isso é simbólico: o país não é cenário, é ideia. Um ponto de fuga. Um abrigo moral que nunca se concretizou. Está sempre do lado de fora da imagem, como se fosse uma promessa não cumprida de reinvenção.
Com sua montagem fragmentária, sua estética deliberadamente instável e seu texto que flerta com o caos emocional, “Oh, Canadá” é talvez o filme mais desarmado de Schrader. Não busca empatia. Não oferece perdão. Ele revela a implosão interna de um homem que, diante da morte, tenta pela última vez sustentar a própria história em pé. Mas o que se vê ruir é muito mais do que uma biografia: é a própria estrutura da identidade quando retirada de seus adornos.
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