“Apocalipse nos Trópicos” não é um documentário. É uma ferida exposta, latejando, com cheiro de passado podre e presente que ainda sangra. Petra Costa volta a cutucar o que ninguém mais quer olhar de frente e entrega talvez sua obra mais crua, mais desencantada e mais brutal.
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O filme é, ao mesmo tempo, denúncia, inventário e testamento. Um inventário da loucura institucionalizada que se disfarçou de fé, uma denúncia da democracia vendida como produto de campanha e um testamento do quanto estamos à beira de aceitar o inaceitável. Não existe neutralidade aqui. Petra não finge imparcialidade jornalística nem se esconde atrás de uma lente asséptica. Ela se envolve, se compromete e, mais do que nunca, escancara a guerra entre fé e política que define o Brasil recente.
Assistir ao documentário é como revisitar um trauma com lucidez ampliada. O tipo de lucidez que machuca mais do que o trauma em si. Quando Silas Malafaia surge em cena, abrindo as portas da própria casa com a confiança de quem já sabe que está vencendo, o espectador é engolido por um personagem que domina a câmera com a certeza absoluta de que está certo. Ele fala com prazer, com precisão, com convicção messiânica. E, o mais perturbador, sem máscara.
Lula aparece. Bolsonaro aparece. Mas quem comanda a narrativa é Malafaia. Ele ocupa o centro do filme não porque a diretora o favorece, mas porque ele se entrega à câmera com a clareza cirúrgica de quem sabe o que está fazendo. Em contraponto, Lula hesita. Modula. Negocia a própria imagem em tempo real. Malafaia finca posição. Lula busca terreno seguro. O contraste grita, não pelas palavras, mas pela postura. E isso, dentro de um documentário político, é mais devastador que qualquer fala de efeito.
Petra acerta ao não caricaturizar ninguém. Ela não precisa. Os próprios personagens se bastam como documentos do colapso. E é essa escolha de ouvir, de permitir que o outro fale até se enforcar na própria convicção, que transforma o filme em um registro essencial do nosso tempo.
A memória da pandemia é um capítulo à parte. Quando o filme revisita os dias de luto, negligência e desinformação, o silêncio da sala pesa como concreto no peito. Reviver essas cenas não é apenas doloroso. É necessário. É pedagógico. Petra não nos deixa esquecer. Porque esquecer, nesse caso, é o primeiro passo para repetir.
“Apocalipse nos Trópicos” não oferece esperança. Ele não tenta consolar. Sua força está exatamente na ausência de promessa. O futuro, aqui, é um lugar ameaçado, frágil, em constante risco de colapso. E o presente, esse presente que muitos se esforçam para mascarar de normalidade, é mostrado como o verdadeiro horror: o horror da conveniência, da diplomacia com o fanatismo, da negociação que vende princípios em troca de governabilidade.
Lula, nesse contexto, surge como um sobrevivente pragmático. Mas seu pragmatismo tem um custo. Quando ele repete discursos conservadores, como a frase infeliz sobre banheiros unissex, ele não só trai uma base progressista. Ele reforça o que diz combater. O documentário não precisa sublinhar esse momento. A imagem fala. O silêncio fala. E o espectador entende.
É isso que Petra entrega: um filme onde a força está na escuta, no desconforto, na ausência de edição moral. Ela filma com responsabilidade, mas sem aliviar. Ela confronta, mas sem manipular. E, no fim, o que resta é um retrato que dói porque é verdadeiro. Não há catarse. O apocalipse aqui não é destruição cinematográfica. É constatação. Constatação de que a democracia brasileira sobreviveu, mas saiu deformada do outro lado.
Esse é o horror de verdade. Um país dividido não por ideologias claras, mas por estratégias de sobrevivência institucional. Um país onde o fundamentalismo religioso não é mais ameaça, é engrenagem. Onde o delírio deixou de ser exceção e virou projeto. Onde a política passou a performar fé para manter poder.
“Apocalipse nos Trópicos” não entrega conclusões. Entrega espelhos. Espelhos sujos, rachados, mas inescapáveis. É o tipo de filme que gruda na pele como poeira radioativa. Não se lava depois dos créditos. Fica ali, te acompanhando por dias, semanas. Até você entender que o título não é metáfora. O apocalipse já começou. E ele fala português.
“Apocalipse nos Trópicos“
Direção: Petra Costa, Alessandra Orofino
Elenco: Jair Messias Bolsonaro, Lula, Petra Costa
Disponível em: Netflix
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