“Pedaço de Mim” se destaca como uma estreia marcante da diretora Anne-Sophie Bailly, que desde o primeiro quadro parece desafiar expectativas. Mona, vivida por Laure Calamy em uma performance contida e ao mesmo tempo visceral, é o centro dessa trama que explora, com rara sensibilidade, o equilíbrio frágil entre o cuidar de si e dos outros. A narrativa de Bailly é uma reflexão silenciosa às relações que se transformam, e aos vínculos que inevitavelmente se desmancham diante das mudanças inesperadas da vida.

O filme não se limita a ser um estudo de personagem, é um exercício de empatia cinematográfica. Bailly, em uma jogada quase subversiva, evita os diálogos expositivos e não entrega ao espectador uma narrativa mastigada. Ao invés disso, ela nos convida a testemunhar o processo de descoberta de Mona, desde a tranquilidade solitária da natação onde seu rosto surge da água como uma pausa momentânea na turbulência interna até o choque de ser confrontada pela realidade da gravidez de Océane, namorada de seu filho Joël, que também possui deficiência. A relação mãe-filho, antes uma unidade quase simbiótica, começa a se fragmentar.
O detalhe aqui não é incidental. Bailly vai além da superfície ao tratar as questões de deficiência com uma honestidade rara no cinema. Não há a intenção de heroizar nem infantilizar os personagens. Froger e Galletto, ambos deficientes na vida real, trazem autenticidade ao romance improvável de Océane e Joël, quebrando estereótipos sem ignorar as dificuldades reais que enfrentam. A tensão está justamente na hesitação de Mona em aceitar essa nova realidade, ao mesmo tempo que os pais de Océane se mostram reticentes em permitir que a filha, que precisa de cuidados, se torne mãe.
É essa colisão de perspectivas que sustenta a força do roteiro de Bailly. De maneira sutil, ela questiona a sociedade que julga as capacidades dos indivíduos com deficiência, sem didatismos. O que está em jogo aqui não é apenas o direito de ser mãe ou pai, mas o direito à autonomia, à dignidade. As cenas íntimas entre Joël e Océane, onde pequenos gestos como beijos no ombro traduzem uma linguagem de amor própria, são um lembrete constante de que esses personagens, muitas vezes subestimados pela sociedade, têm profundidade emocional e intelectual.
“Pedaço de Mim” é um filme que não se preocupa em agradar todos os públicos. Ele exige uma atenção cuidadosa às camadas invisíveis do cotidiano de seus personagens. As escolhas visuais (como o uso recorrente da água, sugerindo tanto purificação quanto sufocamento) e a trilha sonora sutil são eco de uma diretora que compreende o poder do silêncio e do não-dito. Ao final, Bailly nos entrega uma reflexão contundente sobre as complexidades do cuidado, do amor e da independência, sem recorrer a soluções fáceis. Em uma estreia impressionante, ela reafirma que o cinema é, antes de tudo, uma ferramenta para expandir nossas noções de humanidade.
O filme faz parte da programação do Festival do Rio. Para mais informações, basta clicar aqui.