“Vidro Fumê” (2024), dirigido por Pedro Varela, propõe-se como um thriller urbano centrado em dois eixos narrativos distintos, ambos ambientados num Rio de Janeiro que oscila entre cartão-postal e distopia social. O longa é baseado em eventos reais, e parte de uma premissa que mistura sequestro relâmpago, violência sexual e crítica à estrutura de poder, elementos que, se tratados com o devido equilíbrio, poderiam resultar num estudo contundente sobre trauma e desigualdade. No entanto, apesar da proposta temática ambiciosa e da intensidade da atmosfera, o filme entrega um resultado narrativo desequilibrado, com claros problemas de foco e representatividade.
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O ponto de partida da história é o sequestro de Mary (Ellie Bamber), uma jovem estrangeira que, em busca de uma nova vida, se muda para o Rio de Janeiro. Ao lado do namorado brasileiro Gabriel (James Frecheville), ela vive uma noite de terror após ser capturada por criminosos e mantida refém numa van que percorre a cidade sob o olhar impotente da polícia. Paralelamente, o filme apresenta Miriam, uma artista negra brasileira, vítima de assédio e chantagem por parte de um político. Em tese, o longa pretende cruzar essas duas experiências de violência feminina para apontar as sobreposições entre machismo, racismo e desigualdade social. Em prática, no entanto, o desequilíbrio na abordagem dessas histórias compromete a eficácia do discurso proposto.
A estrutura narrativa dedica a maior parte do tempo e da tensão à trajetória de Mary, relegando Miriam a uma presença periférica e quase decorativa. Ainda que a violência sofrida por ambas seja igualmente grave, o roteiro falha ao estabelecer paralelismos sólidos entre as duas, e a desproporção no tempo de tela evidencia um problema de perspectiva. O filme escolhe investir na angústia da personagem branca estrangeira como fio condutor do enredo, deixando a personagem negra brasileira com um arco diluído, sem desenvolvimento suficiente ou espaço emocional para o espectador compreender sua vivência de forma plena.
Do ponto de vista estético, “Vidro Fumê” é eficaz em sua construção de tensão. A direção opta por planos claustrofóbicos, fotografia granulada e uma trilha sonora pulsante, que reforça a sensação de perigo constante e paranoia urbana. A cidade do Rio de Janeiro é tratada como um personagem em s, ao mesmo tempo sedutora e ameaçadora. Essa dualidade é bem explorada visualmente, com contrastes entre o alto padrão estético das locações e a crueza das situações vividas pelas personagens.
O elenco se entrega com competência. Ellie Bamber carrega o papel com intensidade física e emocional, ainda que sua personagem seja conduzida de forma pouco complexa. Já a narrativa envolvendo Miriam carece de espaço para que a atriz possa demonstrar o peso dramático de sua história, o que resulta em uma performance que, apesar de promissora, é subutilizada.
O roteiro peca ao insistir em simbolismos previsíveis, como a van branca que atravessa o caos urbano ou os monólogos expositivos que tentam forçar reflexões morais. A crítica social está presente, mas falta profundidade e perspectiva interseccional. A tentativa de representar o Rio de Janeiro como uma cidade à beira da barbárie é válida, mas a decisão de priorizar a ótica estrangeira enquanto personagens locais com histórias igualmente trágicas são marginalizado, enfraquece a potência do argumento.
Apesar das intenções nobres, “Vidro Fumê” apresenta uma dicotomia problemática: denuncia as violências estruturais do Brasil contemporâneo, mas acaba reproduzindo, mesmo que inconscientemente, uma lógica de silenciamento sobre corpos racializados e femininos que não ocupam o centro do olhar midiático tradicional. A personagem de Miriam merecia o mesmo investimento dramático que foi dado a Mary. Ambas representam dores válidas, mas só uma delas foi, de fato, explorada com tempo e complexidade suficientes.
Em síntese, “Vidro Fumê” é um thriller eficiente na forma, mas impreciso no conteúdo. A crítica social está ali, mas carece de organização interna, equilíbrio narrativo e responsabilidade na distribuição de protagonismo. Como retrato de um país em crise, o filme levanta questões importantes, mas falha em organizar suas próprias contradições. Ainda assim, pela sua força visual e potencial de debate, é um título que merece ser visto e discutido.
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